Há 500 anos, um português explicava ao mundo “a melhor forma de governação”





Há 500 anos, um português explicava ao mundo
“a melhor forma de governação”


Renato Soeiro
(Texto publicado no jornal “O Gaiense”, 31 de Dezembro de 2016)




ANIVERSÁRIO MARCANTE
Fez agora, neste mês de Dezembro de 2016, precisamente meio milénio que, num livro escrito em latim (a língua internacional da época) e publicado em Lovaina, o português Rafael Hitlodeu, marinheiro viajado e dotado de cultura clássica grega e latina, explicava ao mundo, com impressionante detalhe, aquela que lhe parecia ser “a melhor forma de governação” (é a expressão que figura no título do livro).


Esta obra viria a ter um enorme e imediato impacto na Europa: poucos meses depois sai uma segunda edição em Paris, seguida de outras duas em Basileia e uma quinta em Florença. Nesta, pela primeira vez, aparece no título a palavra por que ficaria conhecida até hoje: Utopia. É um dos livros mais marcantes da cultura europeia e, ao longo dos séculos, continuou – continua – a ser publicado e difundido em todo o mundo. Tão popular a Utopia se tornou que chegou até a ter, logo no século XVII, várias edições em práticos formatos de bolso, tão minúsculos como 6,5x5 cm ou 10,5x5,5 cm.


O seu autor: o inglês Tomás Moro (Thomas More), um dos grandes intelectuais europeus do século XVI, Provedor dos Direitos dos cidadãos de Londres, opositor militante dos impostos com que o rei esmagava o povo para financiar o seu luxo e as suas guerras, deputado ilustre, diplomata, chanceler do reino, homem da igreja e da universidade. Haveria de ser preso e decapitado em 1535 por se recusar a aceitar as pretensões do rei Henrique VIII sobre a regra de sucessão e sobre a chefia da igreja, entre protestos imensos de toda a Europa culta, que conhecia e admirava o autor da Utopia, um dos textos maiores do Humanismo renascentista.


Essa admiração nunca morreu. Tomás Moro ficaria para a história como uma das grandes referências para pessoas de diferentes épocas, diferentes geografias e diferentes ideologias. 
Dois exemplos: meses depois da vitória da Revolução Russa de 1917, Lenine fez gravar num obelisco comemorativo numa praça de Moscovo o nome de Tomás Moro ao lado de Marx e Engels, entre outros; em 1935, nos 400 anos da sua decapitação, a Igreja Católica procedeu à canonização do que é hoje São Tomás Moro. 



Convenhamos que só uma personalidade verdadeiramente excepcional conseguiria ser simultaneamente um herói para os revolucionários marxistas e um santo para a igreja. Isto apesar de a mesma igreja ter colocado a Utopia, durante muito tempo, no Index dos livros proibidos, nomeadamente nesta pátria de Hitlodeu, proibição que a Inquisição zelosamente fazia cumprir.
A nós, portugueses, não pode deixar de nos encher de orgulho que o ilustre autor tenha colocado na boca de um nosso conterrâneo todo o relato e todas as propostas contidas nesta sua obra-prima. No ano em que redigiu a Utopia – 1515 – Moro esteve em Bruges e em Antuérpia, integrado numa missão diplomático-comercial inglesa. Para esta cidade, novo e pujante entreposto comercial e praça financeira internacional de primeiro plano, se tinha transferido, no virar do século, a feitoria real portuguesa, que antes tinha estado em Bruges. Aí vivia uma numerosa e influente colónia de mercadores portugueses e aí aportavam constantemente as nossas embarcações. Moro, já bom conhecedor dos feitos marítimos de Portugal pelos textos e relatos que circulavam na Europa culta, terá contactado nesse porto da Flandres com a nossa gente do mar, falado com vários “Rafaeis Hitlodeus” e obtido talvez uma última inspiração para o seu livro.



ACTUALIDADE DESCONCERTANTE
O livro é apresentado como uma longa conversa que Tomás Moro, acompanhado pelo seu assistente John Clement, tem com um navegador português que lhe é apresentado por Pedro Gilles, cidadão de Antuérpia. Os quatro resolvem ir para o jardim da casa onde Moro estava instalado, para ouvir os relatos de Rafael sobre os novos mundos que conhecera nas suas viagens. 


A conversa é longa e variada; numa primeira parte analisa-se em detalhe os usos e costumes da sociedade inglesa, que o português terá conhecido bem e sobre a qual emite profundos juízos críticos; e fala-lhe depois de uma ilha onde encontrou uma civilização em que “administram as suas coisas com mais saber que nós as nossas”; Moro quer conhecer tudo sobre a vida e a organização da sociedade nessa terra que Rafael tanto admira e propõe que parem para tomar uma refeição, para depois continuarem “sem se importar com o tempo que vai demorar”.


Esta outra parte da conversa, tida depois de comer, constitui o Livro Segundo desta obra. Nele, o português faz um relato extremamente pormenorizado da vida na ilha da Utopia, abarcando todos os aspectos da sua organização política, social, administrativa e dos hábitos quotidianos dos seus habitantes. Não é uma sociedade primitiva, como outras que conheceu, mas uma sociedade avançada e culta, conhecedora tanto das culturas e civilizações clássicas, como dos problemas do resto do mundo contemporâneo.
É, obviamente, uma descrição muito datada, que reflecte os conhecimentos e as preocupações da época. Mas é interessante notar até que ponto denota um enorme avanço em relação aos cânones então vigentes e que haveriam ainda de perdurar dolorosamente até aos nossos dias. Seja sobre a justiça social, a distribuição da riqueza, a propriedade privada, o sistema de saúde e a protecção na velhice, os cuidados paliativos e até a questão da eutanásia, os direitos dos imigrantes, os horários de trabalho, ou mesmo sobre os tratados internacionais, os sistema de leis e os advogados, o urbanismo e a recuperação de casas antigas, a liberdade religiosa, o divórcio e até a crítica da caça e da astrologia e outras adivinhações. Entre muitos outros.
O leitor ficará certamente espantado com a desconcertante actualidade da forma como estes temas são abordados, fazendo pensar nas razões por que, meio milénio depois, ainda nos confrontamos com os mesmos problemas para os quais Moro tinha descrito possíveis soluções. Há várias edições em português, das quais destacamos uma recente e excelente edição da Fundação Calouste Gulbenkian. Aqui fica o desafio para uma leitura de enorme proveito para todos.


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E, para abrir o apetite, aqui ficam alguns extractos, retirados dessa edição:

Justiça social:
“De facto, que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por transaccionar dinheiro ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer nada ou em actividade supérflua, quando entretanto um intendente, um condutor de carros, um artesão, um agricultor, que aguentam trabalho penoso e ininterrupto (…) recebem um alimento tão fraco, arrastam uma vida tão miserável (…)?! Ora, não só é um trabalho sem recompensa e sem frutos que lhes retira o incentivo no presente como também é a perspectiva de uma velhice de indigência o que os mata, tanto mais que o seu salário do dia-a-dia é de si insuficiente para acorrer às necessidades diárias e está longe de sobrar para lhes permitir poupar cada dia alguma coisa que sirva em tempo de velhice. (…) Depois de se ter servido do seu trabalho em idade em que gozavam de forças, quando eles ficam carregados de anos e de doenças e necessitados de todas as coisas, não se lembrando de tantas vigílias, esquecendo tantos serviços, ela, para cúmulo de ingratidão, paga-lhes com uma morte da pior espécie. E quê? Até no salário do dia-a-dia que é concedido à gente pobre os ricos diariamente rateiam alguma coisa, não apenas em fraude privada, mas até com o apoio das leis (…).
É por isso que, quando olho para os Estados que hoje se apresentam em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não está a ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autoridade do Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os perderem, depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres e para deles abusarem. Estas maquinações, desde que alguma vez os ricos as promulguem em nome do bem público, isto é, em nome também dos pobres, logo se tornam em leis. Ora, estes homens, mais que abjectos, que com insaciável cupidez repartem entre si aquilo que bastaria para a todos acorrer, quão longe estão da bem-aventurança do mundo da Utopia!”

Distribuição da riqueza:
“[I]magine-se um ano sem produções e sem colheitas, em que a fome dizimasse muitos milhares de pessoas. Eu sustento, sem rebuços que, se no final deste período de carestia, se batesse à porta dos celeiros dos ricos, haveria de poder-se encontrar tanto cereal que, a ser distribuído entre todos aqueles de que a fome e a peste tomou conta, ninguém haveria de sentir minimamente a escassez causada pelas condições de clima e de solo. Seria tão fácil arranjar alimento, se o afortunado dinheiro, engenhosamente inventado para abrir as portas ao alimento, não fosse ele a barrar-nos o caminho para ele!”

Os ricos:
“Espanta-os também que, sendo o ouro, por própria natureza, tão pouco útil, tenha adquirido, hoje, em todo o lado, tanto valor que o próprio homem, por quem e para cuja utilização esse valor foi constituído, seja tido em menor estima que o ouro em si, de tal maneira que um bronco, que não tem mais inteligência que um cepo, nem menos descaramento que um tonto, acaba, apesar de tudo, por ver submetida a si muita gente, mesmo sapiente e boa, apenas por uma razão, a de lhe ter cabido um pecúlio de moedas de ouro (…) por um capricho da fortuna ou por qualquer artimanha das leis (…).
Uma outra coisa os espanta e eles detestam: a insensatez daqueles que, não devendo a ricos nem lhes estando sujeitos em nada, sem outro motivo que o de eles serem ricos, lhes prestam honras, que só faltava fossem divinas, muito embora sabendo que eles são tão sórdidos como gananciosos, para terem um pecúlio tão seguro e certo de dinheiro, e que, enquanto eles forem vivos, nem uma moedinha, alguma vez, lhes virá desse lado.”

Propriedade privada:
“Efectivamente, quando cada um se pode prevalecer de certos títulos para avocar a si tudo o que pode, seja qual for a quantidade de bens, poucos haverá que sejam admitidos a repartir o que existe, aos outros deixá-los-ão na miséria. Quase se diria que uns são muito mais merecedores que outros dos favores da sorte; enquanto uns são rapaces, desonestos e passam a vida na ociosidade, outros são modestos, simples e, nas tarefas quotidianas, mais dedicados ao interesse público que à procura do interesse pessoal.
É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar totalmente a propriedade privada.”

Horário de trabalho:
“(…) fazer com que ninguém passe a vida na ociosidade, mas cada um se entregue com afinco ao seu ofício, sem todavia se esfalfar desde a madrugada até à noite, sempre a trabalhar como bestas de carga. Tal forma de vida seria um peso maior que o de escravos; será a que levam em muita parte os trabalhadores, mas não na Utopia. Os seus habitantes dividem o dia, incluindo a noite, em vinte e quatro horas de tempos iguais: seis horas são dedicadas a trabalhar, três antes do meio dia, depois das quais tem lugar o almoço, que se prolonga pela sesta em descanso, retomando de seguida o trabalho durante três horas para tudo terminar com a refeição principal. (…) O tempo que houver entre as horas de trabalho e as de sono, com o comer pelo meio, cada um é livre de o utilizar como lhe aprouver (…). A maior parte consagra às letras estas horas de folga (…).
Havendo seis horas apenas para trabalhar, talvez alguém pense que daí decorre provavelmente uma certa falta de bens de primeira necessidade. Isso está longe de acontecer, pois esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem.
Isso se compreenderá melhor se pensarmos que noutros povos há grande parte da população que passa a vida sem fazer nada. (…) A verdade é que, quando tudo se mede por dinheiro, se tornou inevitável exercer ofícios completamente inúteis e supérfluos, para servirem a ostentação ou bem assim a ganância. (…) Mas se todos aqueles que agora se entregam a mesteres inadequados e se toda essa multidão que acima de tudo vai enfraquecendo no ócio e na preguiça (…), se todos eles fossem postos a trabalhar e se isso se fizesse em coisas úteis, facilmente nos daríamos conta do pouco tempo que seria necessário para produzir tudo o que racionalmente se poderia prever como indispensável ou que o conforto postula (ou até mesmo uma parte de prazer que seja admissível e natural); nestas condições haveria abundância e haveria sobras.”

Manutenção de edifícios:
“Um outro factor de economia é de mencionar: na maior parte dos mesteres que produzem bens indispensáveis, há menos trabalho a executar que noutros povos. Efectivamente, por toda a parte, a manutenção dos edifícios ou a sua reparação exigem de muitos trabalho tão contínuo e generalizado que aquilo que o pai edificou um herdeiro pouco avisado deixa degradar a pouco e pouco (…); não é menos frequente que uma casa só se mantenha de pé devido a enormes gastos de outrem; ora a esta um outro, com espírito calculista, põe-na de parte e, ao ser abandonada, a breve trecho cai em ruínas; constrói ele uma nova noutra parte com gastos bem maiores.
Ora, na Utopia, onde todas as coisas estão previstas e onde a governação é bem gerida, muito raramente acontece que se eleja uma nova zona para levantar uma moradia; e não só se remedeiam rapidamente as deficiências manifestas, mas também se previnem as que ameaçam vir a ocorrer. Deste modo, com um trabalho mínimo, os edifícios aguentam-se por muitíssimo tempo.”

Imigrantes e viajantes:
“Todo o visitante que ali chega para tomar conhecimento da terra e se salienta por algum predicado intelectual ou pela experiência de ter viajado muito (…) é recebido com demostrações de simpatia. Na realidade, de bom grado prestam ouvidos ao que lhes contam do que acontece em qualquer parte do mundo.”
(…) [A]lguém de outro povo, trabalhador e pobre, que, de um momento para o outro e por própria iniciativa, escolhe colocar-se ao serviço dos utopienses. São tratados com respeito e nada se lhes impõe a mais que não seja do trabalho a que aliás estão habituados; não os tratam com muito menos deferência que aos cidadãos, deixam-nos partir se algum decide ir embora (o que não acontece senão raramente) e não obrigam a ficar quem não tem vontade disso nem o deixam ir de mãos vazias.”


Justiça:
“Dá-se assim o caso de a justiça no seu conjunto parecer que não é mais que virtude plebeia e de baixa extracção, sentada muitos degraus abaixo do trono régio, ou então que há duas justiças, uma que vale para o povo, que caminha a pé e ao nível do solo, sem ser capaz de alguma vez saltar as barreiras, limitada com peias por todos os lados, outra, a virtude dos príncipes que, sendo mais elevada que a do povo, também é de longe a mais liberal, de tal modo que só não lhe é permitido tudo quanto não lhe apraz.”

Leis e advogados:
“As leis são muito poucas, pois bastam umas tantas para quem possui tais instituições. Aliás, aos outros povos os utopienses censuram principalmente o facto de precisarem de um sem número de livros de leis e de comentadores. Por parte deles, consideram que é uma iniquidade enorme obrigar os homens ao cumprimento de leis que pelo facto de serem tantas não conseguem lê-las ou que pelo facto de serem tão obscuras ninguém as consegue entender; por isso é que dispensam de forma radical os causídicos – que se habituaram a tratar as causas com astúcia e discutem as leis com perfídia.”

Tratados:
“É facto que na Europa, sobretudo nos países em que vigora a fé e a religião cristã, proclama-se soberanamente o carácter sacrossanto e inviolável dos tratados (…). A justo título, realmente consideram que é uma vergonha inqualificável que seja a gente que a si mesma se designa com o nome peculiar de fiéis aquela que mais falta ao cumprimento dos compromissos dos tratados que assinou. (…) [Q]uanto mais eles se envolvem em cerimonial sacrossanto mais depressa se dissolvem, sendo até fácil descobrir que há sempre motivo de chicana nas palavras, que aliás, os próprios ditaram com tanta astúcia que lhes é possível nunca ficarem vinculados de forma escrita, sem retirarem alguma coisa e sem se furtarem igualmente ao cumprimento do tratado e da palavra dada.”
“(…) [E]ssa prática até parece levar os homens a crer que nasceram para serem adversários e inimigos uns dos outros e que têm por obrigação investir uns contra os outros, a menos que haja tratados a proibi-lo; assim, não é por haver tratados celebrados que se cultivam as boas relações de amizade, pois continua a haver direito de pilhagem, sempre que, por imprevidência dos redactores de um tratado, nenhuma interdição a esse respeito ficou compreendida e acautelada nos pactos. Ora, ao contrário de tudo isto, consideram eles que ninguém deve ser tomado por inimigo, se dele nunca partiu qualquer ofensa. Partilhar a mesma natureza vale de pacto, basta e é preferível que os homens vivam unidos entre si mais por bem quererem do que por protocolos, mais pelo coração do que pelas palavras.”

Liberdade religiosa:
“Facto é que entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode ser desconsiderado por causa da sua religião. Com efeito, logo de início, Útopo (…) estipulou que cada um seria livre de seguir a religião que quisesse, mas que só podia angariar adeptos para ela expondo as suas razões de modo pacífico e com moderação, sem investir contra as outras de forma desabrida, doutrinando, mas através da persuasão, evitando toda a forma de violência e debatendo com moderação (…). Com razão pensava ele que exigir sob violência, ou sob ameaças, que todos reconhecessem como verdadeiro aquilo em que cada um acredita isso ultrapassava os limites e era insano. (…) Por tal motivo, Útopo colocou toda esta questão em aberto e deixou liberdade a cada um de decidir quanto àquilo em que se obrigava a acreditar.”



A guerra:
“A acção bélica, [em latim bellum], é algo de verdadeiramente bestial, [em latim belluinum], mesmo que não haja qualquer tipo de bestas para quem ela seja tão frequente como para o homem o recurso a ela; muito embora tal aconteça por parte do homem, é rotundamente proscrita pelos utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a custo se encontrará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra.”

Astrologia:
“Quanto à conjunção ou oposição dos planetas e a toda essa impostura que é a adivinhação pelos astros, nem sequer sonham com isso. (…)”
“Quanto a augúrios e a outras adivinhações de vã observância, a que é prestada muita atenção noutros povos, pela parte deles não lhes conferem qualquer importância e troçam dessa prática.”

Saúde:
“(…) [E]m primeiro lugar, colocam o cuidado dos doentes, que são tratados nos hospitais públicos, (…) tão amplos que (…) ninguém tem de ficar apertado e por isso em más condições (…). Estes hospitais estão tão bem planeados e tão completamente dotados de equipamentos de saúde, e, além disso, os cuidados são aí prestados com tanto carinho e solicitude, tão assídua é a assistência de médicos da maior competência, que, muito embora ninguém para ali seja enviado contra vontade, poucos serão, de verdade, os que (…) numa situação de doença, não prefiram estar ali do que ficar acamados em sua casa.”
“Dos prazeres que o corpo solicita, cabe a palma à saúde, pois têm bem presente que a satisfação de comer e de beber e tudo aquilo que corresponde a um plano de gozo da vida deve ser posto como finalidade mas em razão da saúde. (…) [O] homem de bem-pensar prefere esconjurar as doenças a optar por remédios, dar luta à dor a andar em busca de paliativos.”

Cuidados paliativos e eutanásia:
“[O]s que sofrem de doença incurável, procuram assisti-los e entretê-los com momentos de conversação, levando-lhes mesmo algo que lhes possa servir de paliativo. No entanto, se a doença não é apenas incurável, mas também se prolonga de forma acabrunhadora e intolerável, então, os sacerdotes e os magistrados, atendendo a que o doente já não consegue corresponder às funções vitais (…) ou que está apenas a sobreviver penosamente à sua própria morte (…) [aprovam que não] hesite em assumir a morte, já que a vida é para ele um tormento; (…) uma vez que pela morte não rompe com uma vida feliz, mas com um suplício, seria de todo sensato que assim procedesse (…). No entanto, por eles, os utopianos não forçam ninguém a isso nem diminuem o que quer que seja dos cuidados que antes lhes prestavam. Há, contudo, respeito por quem se deixar persuadir a morrer desta forma.”

Caça:
“Ou haverá maior sensação de prazer quando um cão persegue uma lebre do que quando corre atrás de outro cão? Na realidade, trata-se da mesma coisa, se é que é o correr que desencadeia o prazer! Pelo contrário, se é a espera do sangue e a expectativa da dentada que retêm suspenso o olhar, deve mover sobretudo à compaixão observar que um lebracho é desfeito por um cão, um fraco por outro mais forte, enfim, um ser inofensivo por outro que é cruel. Por isso os utopienses repudiam esta prática da caça, como coisa indigna para homens livres, remetendo-a para carniceiros (ofício que entregaram, como dissemos, nas mãos de serviçais). De facto, consideram que a caça é a parte mais degradada desse ofício de talhante, quando comparada com outras acções mais úteis e mais honrosas, que são de muito maior proveito; aliás, os talhantes não matam os animais senão por necessidade, ao passo que o caçador mata e destroça um animalito só por um pouco de prazer. Consideram eles que é indigno o anseio de assistir à matança dos animais e que ou brota de uma sensibilidade que roça pela crueldade ou procede de prática insofrida de prazer tão desenfreado que acaba em crueldade.”

Divórcio:

“Quanto ao mais, acontece por vezes que há esposos cujos temperamentos se tornam incompatíveis entre si e ocorre também que um e outro encontram alguém com quem criam expectativas de formar uma vida mais harmoniosa; separando-se um do outro por comum acordo, contraem novos matrimónios, mas não sem entretanto receberem autorização do senado, o qual, todavia, não admite o divórcio senão depois de ter sido instruída cuidadosamente a causa pelos próprios interessados com suas esposas.”