Um país da UE duplamente invadido


Publicado em: O Gaiense, 4 de Dezembro de 2010




Escrevo-vos a “carta” desta semana num dos locais politicamente mais complexos da União Europeia: o seu território mais oriental – Chipre – pequena ilha mediterrânica rodeada de Ásia, de África e de Médio Oriente, espécie de contraponto geográfico e geopolítico do nosso muito ocidental e atlântico Portugal. Há algo de muito especial que nos liga aos cipriotas. Em 1974, quando a Revolução dos cravos libertou da censura a nossa televisão e a abriu ao mundo, o primeiro grande evento internacional que pudemos seguir quase em directo foi a guerra em Chipre. República independente há apenas 14 anos, em Julho de 1974 foi alvo de um golpe de estado contra o presidente democraticamente eleito, organizado pela junta militar fascista que governava a Grécia, contando com a cumplicidade de cipriotas gregos de extrema direita. Usando como pretexto este golpe, a Turquia invadiu a ilha. Houve milhares de mortos e de deslocados. A ONU enviou uma força de interposição e criou uma zona tampão ao longo de uma linha divisória que, mais de três décadas depois, continua a ser vigiada por tropas das Nações Unidas, e por militares gregos de um lado e turcos do outro, delimitando a Norte uma zona ocupada, com cerca de 37% do território.

 (Ruas bloqueadas no limite da zona tampão. Ao fundo, o posto de vigilância turco)


Na zona Sul há outros problemas. Quando, após a guerra anti-colonial de 1955 a 1959, os Britânicos finalmente abandonaram o poder e reconheceram a independência de Chipre, decidiram manter duas áreas sob seu controlo, a que chamam “áreas soberanas”, onde têm instaladas bases militares fundamentais para as suas operações no Médio Oriente, no Iraque ou no Afganistão. Nessas zonas, que correspondem a 2,7% do território, não se aplicam as leis do país. Mais curiosamente ainda, apesar de Chipre ser um Estado-Membro da UE e o Reino Unido também, no Tratado de Lisboa voltou a ser reafirmado que “os Tratados não se aplicam nas áreas das Bases Soberanas do Reino Unido de Akrotiri e Dhekelia, em Chipre”. É a diplomacia inglesa no seu melhor. Neste caso, nem foi preciso a Wikileaks revelar o escândalo, basta ler o Jornal Oficial da UE. Mas não se aplicam os Tratados porquê? Porque os ingleses precisam de locais seguros para desenvolver certo tipo de actividades militares e de espionagem que jamais passariam no crivo das leis europeias. Essas zonas ocupadas são verdadeiros offshores constitucionais.

Pobres cipriotas... Quando conseguirem finalmente livrar-se do ocupante turco do Norte, vão ter ainda de tratar do ocupante inglês do Sul.

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