Fórum Social Mundial na Amazónia

Publicado em: O Gaiense, 31 de Janeiro de 2009

Começou a Forum Social Mundial (FSM), a maior assembleia dos que lutam por um mundo melhor, um outro mundo que é possível, segundo a divisa do movimento. Grupos políticos, activistas religiosos e sindicais, investigadores, populações indígenas, autoridades locais e nacionais progressistas, todos se misturam numa fraternidade universal de recusa da degradação humana e ambiental em que se transformou o capitalismo global.

A edição de 2009 do FSM realiza-se na Amazónia, em Belém do Pará. Tem cerca de 100 000 inscritos para 2400 actividades, debatendo todos os grandes problemas que afectam a nossa sociedade, bem como os caminhos de saída e as soluções para esses problemas. É o fórum das diferentes vítimas da crise, que se realiza em simultâneo com a reunião de Davos, onde os empresários e políticos autores crise actual debatem também a melhor forma de se livrarem das dificuldades que eles próprios criaram, salvando os seus privilégios à custa dos que pouco ou nada têm.

Na abertura do FSM, uma grande manifestação percorreu as ruas da cidade. Pouco depois dos discursos na concentração inicial, junto à baía do Guajará, debaixo de um calor escaldante, os manifestantes foram refrescados por uma torrencial chuva tropical que, durante quase uma hora, transformou o desfile num gigantesco e alegre banho colectivo. Ninguém se incomodou muito, já que o pouco que se veste para aguentar o calor acaba por ser bastante adequado para tomar banho, e depois voltar a secar uns kilómetros mais à frente. Para os habitantes locais, nada de mais normal na estação das chuvas. Para nós, europeus, habituados à compostura dos nossos desfiles políticos, esta é sem dúvida uma nova experiência, que nos aproxima dos nossos irmãos índios que connosco compartilharam, com alegria, esta marcha inesquecível.


Belém do Pará, Janeiro de 2009


Mas nada como algumas imagens para transmitir um pouco do ambiente do evento. Para nós, europeus, habituados à compostura dos nossos desfiles políticos, está definitivamente provado:
Outra manif é possível / Another demo is possible / Une autre manif est possible .
































God bless America?

Publicado em: O Gaiense, 24 de Janeiro de 2009

Os EUA e o mundo chegaram ao fim de um pesadelo. Bush partiu, sem honra nem glória, detestado pelos seus e odiado pelo mundo.

O fim de um pesadelo não é necessariamente o início de um sonho. Mas é certamente o início de um novo ciclo, que não poderá ser pior do que o anterior.

O discurso inaugural de Obama, que o mundo ouviu com emoção e esperança, teve inúmeros aspectos positivos, absolutamente diferenciadores da retórica e da estratégia do seu antecessor. Embora tenha acabado mais ou menos com as mesmas palavras: “may God bless the United States of America”.

Apesar de referir que “somos uma nação de cristãos e muçulmanos, de judeus, de hindus e de não-crentes”, apesar de apelar à unidade de todos os norte-americanos, o seu juramento foi feito sobre o livro sagrado de apenas uma daquelas religiões e o seu discurso esteve repleto de referências a Deus e às Escrituras. Até a igualdade e a liberdade foram referidas como dádivas de Deus, a fonte do chamamento para forjar um destino incerto.

Já antes do discurso do presidente, o controverso pastor evangélico Rick Warren tinha feito uma invocação usando citações judaicas e cristãs. E depois do seu discurso, o reverendo Joseph E. Lowery abençoou Obama com as suas palavras (no mais progressivo de todos os discursos da cerimónia, referindo mesmo a transformação dos tanques de guerra em tractores).

Foi Deus a mais para a sensibilidade política dos europeus, que não vêem com muito bons olhos esta mistura de política com religião, que tantos problemas continua a gerar no conflituoso mundo em que vivemos. Até porque, em princípio, se trata do mesmo Deus invocado por Bush em cada um dos seus discursos, nomeadamente naqueles em que fez as desastradas declarações de guerra que marcaram tragicamente o seu mandato. Invocado em vão, como se provou.

Romper o cerco a Gaza

Publicado em: O Gaiense, 17 de Janeiro de 2009

Na Gaza cercada, ocupada e agora dividida a meio pelo exército de Israel, não podem entrar jornalistas. A liberdade de informação foi a primeira vítima da guerra. Sem televisões, o espectro da barbárie pode voar livremente contra qualquer tipo de alvo.

Oito parlamentares europeus, de vários grupos políticos, incluindo o português Miguel Portas, decidiram forçar o cerco. Voaram até ao Egipto e daí, por sua conta e risco, entraram no território proibido com uma câmara de filmar e recolheram imagens que hoje estão a ser exibidas pelas televisões de todo o mundo.

Foram recebidos por John Ging, o director das Nações Unidas em Gaza que, de uma forma admirável e até heróica, continua a coordenar as operações de ajuda debaixo dos bombardeamentos. Diz ele, nessas imagens: Há uma diferença enorme entre o que acontece às vítimas palestinianas dos bombardeamentos israelitas e os alvos dos rockets do Hamas, para além da enorme desproporção das bombas lançadas: os habitantes de Israel podem sempre pegar no seu carro e fugir para uma zona segura, ao passo que os habitantes de Gaza estão aqui bloqueados, em zonas sobrepovoadas, sem meios de locomoção e com as fronteiras fechadas. Agora nem podem deslocar-se entre as zonas divididas pelo exército ocupante. Bombardear cidades nestas condições provoca sempre grande número de mortos e feridos entre a população civil. É contra os valores básicos da nossa civilização.

Como dizia um deputado britânico: a Inglaterra teve uma dura guerra com o IRA, mas nunca lhe passou pela cabeça arrasar Belfast à bomba. Isso apenas nos fizeram os nazis.

Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht assassinados há 90 anos









Publicado em: Esquerda.net, 15 de Janeiro de 2009

15 de Janeiro de 2009 - No dia em que se comemoraram 90 anos sobre o assassinato de Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, uma delegação do Bloco esteve presente na cerimónia evocativa em Berlim.

É uma evocação de grande significado para a esquerda alemã que, naquele dia fatídico, perderia, de uma forma violenta, os seus dois principais dirigentes revolucionários. Desde então, ano após ano, a população de Berlim vai neste dia ao cemitério de Friedrichsfelde mostrar que não esqueceu nem os mortos, nem os responsáveis.

Estes 90 anos de romagens atravessaram todos os difíceis anos 20, o regime nazi, a guerra, a República Democrática Alemã, a reunificação do país, a União Europeia. Assumiu primeiro a forma de acto de revolta e protesto, depois de acção quase clandestina, após a Segunda Guerra a forma de acto oficial com pompa de Estado, nos anos 90 de afirmação contra a indiferença e o esquecimento. Mas, havendo ou não convocatória e organização oficial ou partidária, dezenas de milhares de berlinenses rumam, naquelas frias manhãs de Janeiro, ao cemitério para deixar uma flor.

Não uma flor qualquer: tem de ser um cravo vermelho. Uma flor com história política na Alemanha. Quando os manifestantes do 1° de Maio foram proibidos de transportar bandeiras vermelhas e quando a polícia lhes arrancava mesmo da banda do casaco uma tira vermelha que simbolizava a bandeira interdita, transportar na mão uma flor foi a solução criativa e resistente para que Maio continuasse vermelho. O cravo, flor do Maio dos trabalhadores alemães, foi o símbolo espontaneamente escolhido pelos que em 1920 vieram comemorar, pela primeira vez, o aniversário do assassinato.

Os últimos dias
Estes eram tempos de grande tensão na Alemanha. No início da guerra, em 1914, Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht, então proeminentes figuras do Partido Social Democrata (SPD), estão entre os mais determinados opositores à guerra que começa e à decisão parlamentar de votar o orçamento necessário para o esforço de guerra, que a maioria do SPD considerava um imperativo nacional. Uma cisão dá então origem à liga Spartakus, que organiza aqueles que não só se opõem ao esforço de guerra, como trabalham para que a guerra se transforme numa revolução socialista. Na sequência desta actividade política, Rosa e Karl serão presos em 1916. Em Novembro de 1918, uma revolução destitui o Kaiser e devolve-lhes a liberdade. Estávamos no dia 8. No dia seguinte, Liebknecht, de uma varanda da residência fortificada do Kaiser, proclama a República Socialista Livre (Freie Sozialistische Republik). Nessa mesma noite, o SPD declara, a partir do Reichstag, a República de Weimar.
Juntos e em liberdade, Luxemburg e Libknecht reorganizam a liga Spartakus, fundam o jornal Bandeira Vermelha e, no dia 14 de Dezembro, publicam o novo programa revolucionário da liga. Entre os dias 29 e 31, mesmo no fim do ano de 1918, realizam um congresso, conjuntamente com mais duas organizações, uma de socialistas independentes e outra de comunistas internacionalistas. As três fundem-se nesse congresso e, no dia 1 de Janeiro de 1919, anunciam que nasceu o novo Partido Comunista da Alemanha (KPD).

O novo ano começa com mais levantamentos revolucionários em Berlim. O novo Chanceler, Friedrich Ebert, do SPD, dá ordens ao Freikorps, uma força de elite de tendência ultra-conservadora, para esmagar a revolta. No dia 15, os militares do Freikorps prendem Rosa Luxemburg e Karl Libknecht, entre outros revolucionários. Às 20:45, um carro chega ao hotel Eden, sede do Freikorps, com Rosa sob prisão. 10 minutos depois chega outro caso transportando Libknecht. O capitão Pabst interroga-os sumariamente e ordena que sejam eliminados. Rosa, recebe uma coronhada, é arrastada para um carro e é abatida com um tiro na cabeça. O seu corpo é levado e às 22:30 o carro regressa e os seus ocupantes informam que o cadáver foi lançado ao rio Spree. Só viria a ser encontrado meses mais tarde, no dia 1 de Junho.

O outro carro, que levou Libknecht, regressa pelas 23:00 com a missão cumprida de uma forma algo diferente. O preso foi levado vivo, foi maltratado e assassinado nos jardins junto ao Zoo de Berlim. O corpo foi entregue na morgue, sem qualquer identificação.

O oficial de baixa patente que executou a ordem de disparar sobre Rosa, Otto Runge, recebeu papéis falsos e dinheiro para desaparecer. Mas viria mais tarde a ser levado a julgamento. Pediram-lhe que confessasse o duplo homicídio, mas dizendo que tinha sido um acto de iniciativa individual devido a problemas de insanidade mental. Foi condenado a 25 meses de prisão, mas poucos meses depois já estava em liberdade. O regime nazi viria mesmo a atribuir-lhe uma recompensa pelo seu acto.

Os oficiais superiores que deram as ordens e organizaram a operação nunca foram julgados. Um deles, o capitão Pabst, que interrogou Rosa e Karl e terá dado a ordem de execução, numa entrevista dada em 1962 à revista "Der Spiegel", reiterou que tinham sido o ministro da defesa e o próprio chanceler Friedrich Ebert, ambos do SPD, que tinham dado a aprovação para as suas acções.

Ironia da história. Hoje a grande fundação ligada ao partido alemão da esquerda, Die Linke, é a Fundação Rosa Luxemburg. E a grande fundação dos sociais-democratas, ligada ao SPD, é a Fundação Friedrich Ebert. A política alemã não se compreende sem ter sempre o livro de história na mão.

A Alemanha é verdadeiramente o país onde tenho sentido, como em nenhum outro, a presença constante do último século, com todo o seu peso e todo o seu dramatismo. Mas talvez só a sua história contenha todo aquele denso emaranhado de emoções e dramas que consegue impelir, ano após ano, tantos milhares de pessoas a percorrerem longos caminhos de neve para depositarem um cravo vermelho numas pedras com uns nomes gravados. Rosa Luxemburg e Karl Liebknecht - Die Toten mahnen Uns.

Alarvidades da presidência checa

Publicado em: O Gaiense, 10 de Janeiro de 2009

No esquema de rotação semestral da presidência do Conselho Europeu, começou no dia 1 a presidência da República Checa. E começou com estrondo.

Num artigo publicado esta semana no Financial Times, o presidente da República, Vaclav Klaus, desfia uma série de barbaridades que não auguram nada de bom para este semestre crucial na vida política da UE.

Diz ele que a crise financeira, que estaria a ser exagerada pelos media, não é culpa dos mercados, mas sim dos políticos. E que a resposta, portanto, não pode ser mais regulação, nem mais nacionalizações ou outras intervenções dos Estados. Precisamos, sim, de mais liberalização, mais espaço para a iniciativa privada, de enfraquecer ou mesmo repelir as actuais normas laborais, sociais, ambientais e de saúde (sic), que bloqueiam a actividade económica. Mais mercado, menos regras e menos governo, diz o senhor.

Acrescenta que isso do aquecimento global é uma treta, um fenómeno que não estaria comprovado. Combater as emissões de dióxido de carbono é inútil, prejudica os negócios e, além do mais, se houver alterações do clima, a humanidade acabará por se habituar.

É muito difícil encontrar um texto de um político com responsabilidades instituicionais com tantas alarvidades juntas. Este integrismo neoliberal, na sua versão mais bárbara, começa a ser, felizmente, uma raridade no panorama europeu e mesmo internacional. Mas este é o homem que preside aos destinos do país que hoje preside aos destinos de todos nós. Tem seis meses para causar danos...

Boas não-entradas

Publicado em: O Gaiense, 3 de Janeiro de 2009

Afinal, “o Tratado de Lisboa, assinado a 13 de Dezembro de 2007, com entrada a vigor a 1 de Janeiro de 2009”, não entrou. Já no seu antecessor se dizia “o presente Tratado, que estabelece uma Constituição para a Europa, entra em vigor no dia 1 de Novembro de 2006”. Também não entrou.

Em ambos os casos se anunciaram enormes desgraças para a União Europeia se não conseguisse ter os Tratados ratificados dentro do prazo. Mas o primeiro dia do ano nasceu calmo e soalheiro, pouco preocupado com as más profecias. E em Junho, teremos eleições europeias, sem Tratado, e tudo vai correr normalmente.

Não é que a UE não precise de um bom Tratado, que estabeleça princípios, garanta os direitos fundamentais e defina um funcionamento democrático. Mas não era o caso dos Tratados rejeitados. O principal problema é que se tentou constitucionalizar um modelo económico muito específico, de primazia à concorrência, às privatizações e à desregulação das relações de trabalho, modelo que pode até ser legitimado por eleições, mas que temos de admitir que outras eleições a seguir o possam rejeitar e substituir por outro completamente diferente. Estas opções económicas devem ser resultado do voto livre dos eleitores e tentar fixá-las num Tratado, para que as eleições seguintes não as possam alterar, é viciar o jogo democrático.

Ironia das ironias, ainda o Tratado não entrou em vigor e as opções neoliberais que o conformam já estão em profunda crise de descrédito devida aos resultados desastrosos que provocaram na economia. Se tivéssemos o Tratado em vigor, seria mais difícil fazer as mudanças profundas que urge fazer em 2009.