Governo salva bancos e afunda-se a si próprio

Publicado em: O Gaiense, 27 de Dezembro de 2008

Na dita “capital” da União Europeia, o ano vai acabar sem governo. O governo belga é a primeira vítima política da actual crise financeira. Será um sinal do que iremos ter em maior escala no ano que vai começar?

O governo de Yves Leterme nunca foi um exemplo de estabilidade. Formado muitos meses depois do acto eleitoral que lhe deu origem (por dificuldades em articular uma base parlamentar no absurdo xadrez político, regional e linguístico em que a Bélgica se transformou), tentou sair do descrédito com uma acção rápida e retumbante de salvamento dos dois principais bancos do país: Fortis e Dexia. Pode ter salvo provisoriamente os bancos do naufrágio iminente, pode ter evitado o efeito dominó que criaria, mas afundou-se ele próprio na mesma operação.

O Fortis é o maior empregador privado na Bélgica. O plano, acordado entre a Bélgica, a Holanda e o Luxemburgo, incluía o desmantelamento do banco. Na Holanda nacionalizam-se as suas principais actividades e o governo belga acorda com o banco francês BNP Paribas a tomada de controle das actividades bancárias e de seguros na Bélgica. Os pequenos accionistas, vendo as suas acções perder todo o valor com esta partilha dos sectores rentáveis da instituição, recorrem judicialmente. O Tribunal não só lhes dá razão, como denuncia a existência de pressões do governo para evitar esta decisão. O caso, já chamado de “Fortisgate”, avoluma-se, fala-se de corrupção e o governo demite-se em bloco. A Bélgica mergulha numa crise política, que vem somar-se à crise financeira e económica.

Ninguém arrisca previsões sobre os efeitos desta conjugação de crises. 2009 arranca, pois, com céu fortemente nublado e prováveis tempestades. O conhecido efeito dominó, bem conhecido no sector financeiro, também existirá no mundo da política?

Para que serve um Parlamento?

Publicado em: O Gaiense, 20 de Dezembro de 2008

Esta semana, o Parlamento Europeu (PE) tomou uma daquelas decisões que vão ser referidas durante anos como um exemplo da utilidade da instituição: votou a Directiva sobre o tempo de trabalho. A proposta que estava em cima da mesa, oriunda da Comissão e depois alterada e transformada em posição comum do Conselho, foi adoptada pelos governos em Junho.

Basicamente propunha que o velho limite de 48 horas por semana, proposto pela OIT nos idos de 1919, e que consta da Directiva europeia em vigor, fosse alvo de derrogações, permitindo que a semana de trabalho se estendesse até 60 ou 65 horas e, em casos especiais, até 79 horas.

Defendia ainda que o tempo que um trabalhador é obrigado a estar no seu local de trabalho à disposição da entidade patronal a fim de poder, se necessário, prestar serviços imediatamente, não contasse como tempo de trabalho se o trabalhador não fosse utilizado.

E outro rol de malfeitorias que a dimensão desta crónica não permite abordar. Estas eram as propostas da Comissão Europeia e do Conselho Europeu. Mas, na UE, a co-decisão legislativa obriga a ter também a aprovação do PE. E os deputados votaram por larga maioria contra este verdadeiro regresso ao ambiente mais sórdido dos livros de Charles Dickens. E votaram desta forma, diga-se em abono da verdade, deputados europeus de todos os partidos, mesmo dos partidos cujos membros na Comissão e no Conselho (nos governos) foram responsáveis por esta vergonhosa proposta.

Daí que se possa responder muito facilmente a quem nos pergunte para que serve o PE: olhem, pelo menos serve para isto, que se estivéssemos entregues à Comissão e ao Conselho estávamos entregues à bicharada.

Tempo de trabalho: Parlamento Europeu bloqueia regresso ao século XIX

Publicado em: Esquerda.net / Opinião em 18 Dezembro 2008

Era demais. No auge da crise, depois de todos os apoios dados aos bancos, depois do "não" irlandês no referendo, na ressaca das trapalhadas para impor o Tratado de Lisboa contra as mais elementares regras da democracia, depois de terem constatado o crescente descrédito das políticas anti-sociais da União Europeia, decretar agora o fim do limite de 48 horas de trabalho semanal seria um movimento demasiado arriscado para quem precisa de ser eleito daqui a seis meses: os deputados europeus.

A grande manifestação sindical europeia, que percorreu as ruas de Estrasburgo na véspera da votação da Directiva sobre o tempo de trabalho, fez-se eco de uma verdadeira causa de civilização, mais do que apenas uma causa sindical. A proposta da Comissão e do Conselho de permitir que a semana de trabalho se estenda até às 65 horas e, em certos casos, até às 79 horas seria uma inversão do curso da história e aparentaria um regresso aos tempos negros do capitalismo do século XIX.

Sobre a Comissão Europeia, autora da proposta, já todos sabemos que não vai a votos junto do povo. E que batalha a todo o custo pela competitividade, objectivo prioritário expresso na Estratégia de Lisboa, que os integristas do mercado sobrepõem à qualidade de vida profissional e familiar dos trabalhadores. Para a Comissão, valores mais altos se levantam e a proposta de Directiva servia os interesses do costume.

Os governos afinaram pelo mesmo diapasão. Haveria sempre a possibilidade de dizerem depois, nos debates domésticos, que a culpa é de Bruxelas. Que por eles, governos, não se teria tocado nas leis que regulam o tempo de trabalho, mas que tinham, contrariados, que obedecer à Directiva. No entanto, se existe uma posição do Conselho, é porque os governos a aprovaram. Para nossa vergonha, na reunião do Conselho de 9 de Junho de 2008 que adoptou a Directiva, só os governos espanhol e grego votaram contra. Alguns governos, como o de Portugal, abstiveram-se. Esta proposta que hoje o Parlamento Europeu (PE) teve a coragem de rejeitar, é a posição comum que o conjunto dos governos lhe propôs que fosse adoptada. O voto do PE é assim uma séria derrota não só da Comissão, como também do Conselho e das suas presidências.


O limite da duração semanal do trabalho

Vejamos mais em pormenor alguns dos aspectos mais relevantes da decisão tomada. O que está em causa é a revisão de algumas das disposições da Directiva sobre o tempo de trabalho actualmente em vigor (Directiva 2003/88/CE).
Uma das questões mais importantes era a possibilidade de os governos poderem exercer um opt-out ou não participação, e as cláusulas de derrogação relativamente ao limite semanal de 48 horas. Lembremo-nos que este modesto limite tinha sido aprovado pela OIT em 1919, há já quase um século...
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DIRECTIVA 2003/88/CE
Artigo 6.º
Duração máxima do trabalho semanal
Os Estados-Membros tomarão as medidas necessárias para que, em função dos imperativos de protecção da segurança e da saúde dos trabalhadores:
a) A duração semanal do trabalho seja limitada através de disposições legislativas, regulamentares ou administrativas ou de convenções colectivas ou acordos celebrados entre parceiros sociais;
b) A duração média do trabalho em cada período de sete dias não exceda 48 horas, incluindo as horas extraordinárias, em cada período de sete dias.

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Estava estipulado que, embora o princípio geral seja que a duração máxima do trabalho semanal na União Europeia é de 48 horas e, na prática, constitua excepção que os trabalhadores na União excedam esse limite, os Estados-Membros podem decidir não aplicar o artigo 6.º da Directiva. A esquerda propunha que esta derrogação terminasse de imediato. O Conselho pretendia manter a derrogação. O que foi aprovado pelo PE estipula que a derrogação deverá terminar no máximo 36 meses a partir da data de publicação da Directiva. Não é o ideal, mas é uma vitória importantíssima contra as pretensões do Conselho.

O Conselho defendia que o limite de horas de trabalho semanal autorizado no âmbito do opt-out, calculadas como média num período de três meses, seria de 60 horas se houvesse uma convenção colectiva ou mesmo de 65 horas se não houvesse convenção e o período inactivo do tempo de permanência fosse considerado como tempo de trabalho. Sendo contabilizada em períodos trimestrais, a duração do trabalho numa determinada semana poderia chegar às 78 ou 79 horas.

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DIRECTIVA 2003/88/CE
Artigo 16.º
Períodos de referência
Os Estados-Membros podem prever:
b) Para efeitos de aplicação do artigo 6.º (duração máxima do trabalho semanal), um período de referência não superior a quatro meses.

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Quanto ao período de referência para o cálculo da duração de trabalho, no âmbito do cumprimento da Directiva, a esquerda parlamentar defendeu que os quatro meses se deveriam manter, mas a posição comum do Conselho de passá-lo para doze meses não foi rejeitada. Este foi talvez o aspecto mais negativo de um conjunto de decisões do PE que vão genericamente no bom sentido.


Definição do tempo de trabalho e período inactivo do tempo de permanência

Uma outra questão importante prende-se com a definição de tempo de trabalho, e sobre se este inclui ou não as horas que um trabalhador é obrigado a estar no seu local de trabalho à disposição da entidade patronal para intervir assim que seja necessário. A Comissão e o Conselho propunham que os períodos inactivos durante o tempo de permanência não fossem contados. O Parlamento, pelo contrário, subscreveu a jurisprudência do Tribunal de Justiça das Comunidades Europeias, considerando que o que caracteriza o conceito de "tempo de trabalho" é a obrigação de estar presente no local determinado pela entidade empregadora e à disposição da mesma, a fim de poder, se necessário, prestar serviços imediatamente.
Este aspecto tem uma especial relevância para os bombeiros, médicos e outro pessoal do sector da saúde, que por isso se fizeram representar em grande número na manifestação de Estrasburgo.

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DIRECTIVA 2003/88/CE
Artigo 2.o
Definições
Para efeitos do disposto na presente directiva, entende-se por:
1. Tempo de trabalho: qualquer período durante o qual o trabalhador está a trabalhar ou se encontra à disposição da entidade patronal e no exercício da sua actividade ou das suas funções, de acordo com a legislação e/ou a prática nacional.


Proposta do Conselho (rejeitada):
O período inactivo do tempo de permanência não é considerado tempo de trabalho, salvo disposição em contrário da legislação nacional ou, nos termos da legislação e/ou das práticas nacionais, de convenção colectiva ou acordo entre parceiros sociais.

Decisão do Parlamento:
Todo o tempo de permanência, incluindo o período inactivo, é considerado tempo de trabalho.
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O descanso compensatório

Outro aspecto muito significativo da decisão do PE refere-se ao descanso compensatório dos trabalhadores que, por necessidade de serviço, não puderam gozar do descanso normal. Foi aprovado que os trabalhadores deverão poder beneficiar de períodos descanso compensatório após a realização dos períodos de serviço. Esta decisão, que parece de elementar justiça e relevando do mais básico senso comum, estava também na mira dos integristas da exploração, que propunham que deveria ser da responsabilidade dos Estados-Membros a fixação da duração de um "prazo razoável" para conceder aos trabalhadores períodos equivalentes de descanso compensatório. Isto foi considerado desumano e gerador de situações em que a fadiga excessiva provoca frequentes acidentes de trabalho.


Sequência do processo

Tendo o Parlamento rejeitado a posição comum do Conselho, abrem-se agora duas hipóteses: ou o Conselho recua nos seus propósitos e aceita todas as alterações do Parlamento, e a Directiva assim revista pode entrar em vigor, ou então o Conselho não aceita e dar-se-á início a uma fase chamada de "conciliação", durante a qual os dois órgãos legislativos da União tentarão chegar a um acordo. Se não houver acordo, não há Directiva.

Para o movimento sindical e para a esquerda política, o momento é agora de exercer a máxima pressão sobre os seus governos para que se vejam obrigados a abandonar as propostas vergonhosas que constam da posição comum do Conselho, bem como a evitar os opt-outs. Não esquecendo que os inspiradores destas propostas, os lobbies empresariais e os políticos que os representam farão também a sua pressão, chantagem e promessas para que os parlamentares cedam nas posições agora tomadas.

Temos hoje uma vitória parcial e provisória, mas o desfecho deste processo está longe de estar definido. Como se costuma dizer: a luta continua!

Nos 60 anos da Declaração Universal

Publicado em: O Gaiense, 13 de Dezembro de 2008

“Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos.” Esta bela frase com que se inicia o artigo 1º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, hoje ainda tão longe de ser uma realidade universal, deveria ser acrescida de um complemento: nascem, vivem e morrem livres e iguais.

A articulação dos dois preceitos fundamentais da carta — “livres e iguais”, a liberdade e a igualdade — é uma das questões maiores da teoria política.

Há quem reconheça que a liberdade e a igualdade devem ser absolutas à nascença, mas se recuse a estender este reconhecimento a todo o decurso da vida do ser humano. Titular desses direitos à nascença, por imposição literal da Declaração, o ser humano seria por natureza dado à desigualdade, cabendo à liberdade garantir o desenvolvimento sem constrangimentos dessa natural desigualdade. Para eles, o que há que garantir é apenas a “igualdade de oportunidades” para que a competição seja justa. A imposição da igualdade seria um estorvo à liberdade.

E há, por outro lado, quem tenha usado o pretexto da igualdade como justificação para adiar a liberdade.

Nem uns nem outros reconhecem a profunda e essencial articulação que existe entre as duas. A igualdade é uma condição para a realização plena da liberdade. Nunca seremos verdadeiramente livres se não formos iguais. A liberdade sem igualdade é apenas a liberdade dos mais ricos ou dos mais fortes. Mas também nunca seremos verdadeiramente iguais se não formos completamente livres. Porque a ausência de liberdade só é possível se uns poucos tiverem a força suficiente para a negar a todos os outros e esta é, já em si, a pior das desigualdades.

O inferno dos paraísos fiscais

Publicado em: O Gaiense, 6 de Dezembro de 2008

Conforme vão sendo conhecidos com mais pormenor os contornos das operações financeiras especulativas que estiveram no coração da tormenta, vai ganhando força uma ideia simples e concreta: é preciso acabar com os paraísos fiscais, placas giratórias para fuga ao fisco e bases de operações de capitais com origem e destino duvidosos. O combate à economia de casino passa por aí. Nos casinos jogam-se fortunas, mas o jogo de casino, apesar de tudo, tem regras, tem controle e paga impostos. Os paraísos fiscais nem casinos são. São salas de jogo clandestino.

A opinião pública portuguesa tem sido confrontada directamente com este problema a propósito dos negócios escuros da Sociedade Lusa de Negócios e do BPN, que já deram lugar à prisão do ex-presidente do banco. Situação mais preocupante quando pensamos que este perito em utilização de paraísos fiscais foi, ao longo de dois governos, o Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, ou seja, foi (em princípio) o responsável pelo combate à fuga ao fisco.

Há dois problemas que a UE tem hoje de enfrentar: um é a regulação das operações das empresas europeias com os paraísos fiscais, muito especialmente as operações dos bancos que estão a receber ajudas provenientes de dinheiros ou avales públicos, sobre as quais a falta de controle seria ainda mais escandalosa.

Mas a UE nunca terá autoridade nesta matéria se não começar por dar ela mesma o exemplo. Dentro do espaço da União há inúmeros paraísos fiscais, espaços legais de realização de operações sem lei. A crise tem reforçado a voz dos que reclamam o encerramento imediato de todos os paraísos fiscais dos Estados-membros.

Plano Europeu de Recuperação Económica

Publicado em: O Gaiense, 29 de Novembro de 2008

Durão Barroso apresentou esta semana a proposta de plano da Comissão Europeia (CE) para combate à crise.

O plano assenta em dois pilares: uma injecção de poder de compra na economia para aumentar a procura e estimular a confiança, feita sobretudo a partir de uma expansão dos orçamentos públicos, e um programa de acções e medidas a curto prazo, numa mistura de velhas receitas fracassadas com algumas medidas interessantes e positivas.

Mas ninguém sabe ainda se o plano vai ter pernas para andar, até porque não depende da CE. O proposto impulso orçamental imediato de 200 mil milhões de euros (1,5% do PIB da UE), que muitos consideram bastante insuficiente, contém apenas um compromisso da CE de 30 mil milhões; pede-se aos Estados-membros que assegurem os restantes 170 (1,2% do PIB). E aqui podem começar os problemas. Merkel e Sarkozy consideram que 1% já seria um bom objectivo. A Irlanda acha muito bom o plano, mas não acha conveniente participar. E outras reacções se seguirão.

Barroso propõe também uma redução temporária da taxa normal do IVA, para estimular o consumo. Mas, no dia em que o Reino Unido baixou a sua taxa para 15%, a chanceler alemã (que aumentou o IVA de 16% para 19% no início do ano passado) já se pronunciou contra uma redução generalizada. Prefere uma redução no imposto automóvel, para apoiar as vendas desta importante indústria alemã, preocupada com a concorrência que pode resultar do apoio que Obama prepara para os construtores americanos.

Uma crise desta envergadura exige, de facto, uma resposta coordenada. Ainda não é claro se a vamos ter. E em que sentido a vamos ter.