Notas sobre uma Europa em movimento


Publicado em: Revista A Comuna n°9, Julho de 2005

Não há Constituição, mas há estratégia

O plano de transformação da Europa num espaço adaptado ao novo projecto neoliberal está num momento crucial.
A nova Europa da desregulamentação, da privatização, da minimização dos serviços públicos, está a ser construída em todos os países (a ritmo diferenciado, mas com um rumo semelhante) a partir de uma dupla pressão:

- por um lado da economia “real”, pressão exercida pelas empresas, com destaque para as grandes multinacionais, criando situações de facto em que as novas condições de exploração se tentam impor como naturais, como uma inevitabilidade que se pode discutir mas que não se pode evitar, e que é apresentada como um resultado da globalização e da concorrência internacional, isto é, de forças externas cujo controle não está ao nosso alcance

- por outro lado, uma pressão do aparelho político, que visa uma adaptação legislativa e institucional a essas mesmas condições, criando ao nível nacional, mas sobretudo ao nível da União Europeia, a superestrutura que facilite o desenvolvimento daquele projecto, procedendo ao desmantelamento sistemático das estruturas e regras herdadas da fase de desenvolvimento keynesiano do período do pós-guerra, que ficaram conhecidas como Modelo Social Europeu, resultado também de um período muito marcado pela força das reivindicações das classes trabalhadores numa altura em que a situação política europeia e mundial lhes era menos desfavorável.
O que existe hoje na Europa não corresponde nem às necessidades do capitalismo “moderno”, nem às necessidades básicas de boa parte dos trabalhadores para terem uma vida minimamente digna.
Tempo, portanto, de instabilidade e de mudança.

No que respeita ao campo político e institucional, ao nível da União, para além da produção de variada legislação sectorial, de que temos tido recentes exemplos com a directiva dos serviços no mercado interno (dita Bolkestein), a directiva relativa ao tempo de trabalho ou a da privatização dos serviços portuários (só para mencionar algumas que ainda andam encalhadas no complexo processo de aprovação por co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho), e do problemático Pacto de Estabilidade e Crescimento, dois outros documentos de fundo, de maior envergadura e importância se destacam: a Estratégia de Lisboa e o Tratado que Estabelece (estabelecia) uma Constituição para a Europa (TCE).

A Estratégia de Lisboa, assim chamada por ter sido aprovada num Conselho Europeu realizado em 2000 em Lisboa, durante a presidência portuguesa da UE encabeçada por Guterres, definia os grandes objectivos da política económica e social a atingir no período de 10 anos, até 2010, portanto. Em torno desta estratégia se gerou o suficiente consenso, e este documento passou a ser referência obrigatória de todas as acções comunitárias: estas serão de apoiar ou não consoante a sua conformidade e o seu contributo para a Estratégia de Lisboa.

Estando nós em 2005, o tempo foi de balanço a meio termo da realização da estratégia. Conclusão: um desastre, dizem no seu relatório os eurocratas do Grupo de Alto Nível, presidido por Wim Kok, que foi criado para avaliar a situação. Os políticos deitam mãos à obra uma vez mais, e aprovam no princípio deste ano, no Conselho Europeu da Primavera, uma revisão a meio termo da dita estratégia, mantendo o rumo, mas simplificando as acções, reduzindo o leque de prioridades para melhorar a focalização nos aspectos considerados essenciais. A Estratégia de Lisboa foi considerada “a principal prioridade da UE nos próximos cinco anos”. Atendendo a que só há 5 para realizar os mesmos ambiciosos objectivos propostos para 2010, e que a situação hoje não é melhor do que era em 2000, a tarefa afigura-se difícil, mesmo aos seus autores.
Sendo a Estratégia de Lisboa um documento da Comissão com mera aprovação intergovernamental e do PE, não sofreu os sobressaltos que viriam a marcar a vida recente do TCE. Sobre este Tratado, que consolidava e constitucionalizava as opções políticas e económicas e definia o funcionamento das instituições, correu-se o risco de o submeter a referendos, com os resultados que são sabidos.
Dos dois documentos chave, salvou-se, de momento, a Estratégia. Que todos apoiam, mas cada qual lê conforme lhe convém.
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[ A ESTRATÉGIA DE LISBOA ]
Na cimeira de Lisboa, em Março de 2000, os Chefes de Estado e de Governo definiram um novo objectivo estratégico para a União Europeia: tornar a UE “na economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social.”
Tratando-se de um documento chave da UE, da sua principal prioridade, esperar-se-ia uma abordagem mais fundamentada da viabilidade dos objectivos e da definição dos meios para os alcançar. Mas não só. Repare-se na problemática concepção que subjaz a este simples parágrafo. Define-se o objectivo com base numa relação de comparação: ser mais do que os outros. Isto tem como consequência que, se houvesse na UE um fantástico progresso no sentido pretendido, mas outra qualquer região do mundo tivesse conseguido também progredir no mesmo sentido e fosse em 2010 mais avançada do que a UE, o objectivo teria de ser considerado como não atingido, uma derrota, portanto, apesar da situação ser “excelente”. Pelo contrário, se a UE estagnasse ou mesmo regredisse, mas as outras regiões regredissem ainda mais do que nós, poderíamos chegar a 2010 numa situação miserável mas com o objectivo atingido, uma vitória, portanto, apesar da situação ser uma lástima.
Esta infeliz formulação de "ser mais do que" corresponde ao espírito mais negativo dos tempos que correm e está coerente com o próprio objectivo: fazer da UE a economia mais competitiva do mundo. É de uma competição que se trata e esta característica envenena todas as políticas que se subordinam à estratégia, e que são, de facto, todas as políticas relevantes da União; a pergunta “contribui para a Estratégia de Lisboa?” que é feita sistematicamente na avaliação de qualquer projecto, deve ser entendida como: contribui para a competitividade? A redução dos salários, da protecção social, dos serviços públicos, do investimento na saúde e no ensino, as privatizações, tudo tem sido justificado em nome da competitividade e da Estratégia de Lisboa.
Não é difícil compreender que muitas das medidas e investimentos mais positivos que são propostos na Europa não passam neste exame. E que a competitividade é claramente o fio condutor de todas as directivas hoje em discussão e que o movimento social se esforça por derrotar, até porque de um modo geral a competitividade (da UE com as outras regiões do mundo) não cria bons empregos, não promove a coesão social, nem o desenvolvimento sustentável, antes pelo contrário, é precisamente a sua ausência que torna as regiões nossas “concorrentes” mais competitivas. Para um novo rumo, a Europa precisa de outra estratégia. Construí-la é uma tarefa central do momento presente.

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Blair ao ataque: o plano B existe
É o B de Blair e de Brown, de Bush, de Berlusconi, de Barroso


Tony Blair, na sua hábil intervenção no Parlamento Europeu que marcou o arranque do semestre da presidência britânica do Conselho Europeu, utilizou a Estratégia de Lisboa para o seu ajuste de contas com os franceses e para justificar o seu bloqueio à aprovação das perspectivas financeiras para o próximo período 2007-2013. Perguntou se os deputados europeus entendiam que, para conseguir em cinco anos fazer da UE o espaço económico mais competitivo do mundo baseado no conhecimento, faz sentido continuar a investir a fatia de leão dos fundos europeus na agricultura - tarefa que ocupa uma percentagem mínima, e cada vez menor, da população -, enquanto um investimento muito inferior é feito na educação, na investigação e na tecnologia, essas sim, âncoras da Estratégia de Lisboa e da construção do futuro.
A terceira via não vai perder esta oportunidade de crise na velha Europa para acertar contas com os seus parceiros/inimigos da Internacional Socialista e com os governos do continente que se opuseram à sua política de alinhamento com Washington. O argumento é simples: vocês falharam na criação de empregos, principal problema da União e a principal razão dos nãos nos referendos; a nossa solução, mais liberal e mais privatizadora, provou ser o caminho. Para Blair, a presidência britânica não podia ter calhado em melhor altura. Ainda por cima liberto do pesadelo de ter de fazer o referendo constitucional, onde não podia afastar-se completamente do sim, cujas hipóteses de vitória eram verdadeiramente diminutas.
Este é um problema sério para o movimento popular: há a possibilidade real de a crise actual vir a resultar em votos ainda mais à direita, na busca cega de algo diferente.


Movimento, os próximos passos

Com os governos desorientados a tentarem encontrar um caminho de saída para a crise, abre-se uma nova fase para o movimento popular. A nossa corrente já tinha definido um caminho para a refundação democrática da União Europeia bem antes de a crise estalar. Sabemos o que queremos e já publicamos resoluções bem claras sobre a matéria.
Mas o momento é hoje de especial oportunidade e, portanto, de especial responsabilidade. Um dos riscos que se corre é o de olhar para a Europa a partir das nossas perspectivas demasiado locais e, por locais, aqui pode entender-se por exemplo a França. É certo que hoje somos todos franceses no contentamento, no orgulho da vitória, no gozo profundo com o semblante carregado dos grandes políticos do projecto derrotado. Mas não podemos pensar que a Europa é a França. Se um país como a França é suficiente para matar o projecto de Constituição, sobretudo se secundado imediatamente pela Holanda, há que compreender que não é suficiente para construir uma alternativa. A situação na Europa, dos Açores à Polónia, da Suécia até Chipre, não é exactamente a mesma que em Paris. À maioria das cidades e vilas da União nunca chegou o Tratado constitucional, muito menos a sua crítica.
Mesmo em França e noutros países onde o movimento está activo, a complexa unidade do não de esquerda ou progressista não se revê numa alternativa comum ao Tratado rejeitado. Por um lado, porque há várias correntes de opinião sobre a construção europeia dentro dos sectores mais europeístas, por outro lado porque há esquerdas activas relativamente eurocépticas, e por outro porque há sectores do movimento mais autonomistas ou mais recalcitrantes a encarar qualquer projecto político institucional. Se alargarmos o âmbito geográfico da análise, incluiremos os sectores verdadeiramente de esquerda dos países do Norte, onde o eurocepticismo e mesmo a recusa da União Europeia são dominantes, bem como algumas forças do Sul ancoradas em posições mais soberanistas ou mesmo assumidamente anti-UE, afastando-se todos de qualquer concordância com projectos constituintes europeus, por mais democráticos que sejam.
Além do mais, não há hoje interlocutores institucionais para esse processo. Com todos os governos mais ou menos comprometidos com o actual projecto de Tratado e com a política que lhe subjaz, com todos os parlamentos nacionais, e também o europeu, dominados por forças do centro e da direita, qualquer conclusão positiva de um processo de alternativa constitucional europeia é difícil de vislumbrar.
Assim sendo, fazer da busca de um projecto diferente de Constituição, ou mesmo de um processo constituinte democrático e participado, o centro da táctica pós-referendo, teria como consequência estilhaçar um movimento que está numa fase ascendente e que pode aproveitar de um momento político favorável e dificilmente repetível.
Mas, se o movimento existe, o que o une? Une-o a recusa do neoliberalismo e das suas consequências, da fome e do abaixamento das condições sociais de existência e de trabalho, une-o a recusa da política de guerra e de rapina do imperialismo. Do que se trata é de, com base nesta unidade que não deve ser quebrada, alargá-la ainda mais, como se viu com o Make Poverty History que pode ser feito. Alargá-la às bases populares dos partidos do centro político que, com a crise social, têm condições para abandonar as suas referências políticas tradicionais. Alargá-la e consolidá-la através da passagem de uma fase de negação do projecto neoliberal para uma fase de apresentação de alternativas para uma Europa social. Tentando ganhar o maior apoio social para essas alternativas e tentando que esse apoio se transforme numa base também para alternativas políticas e eleitorais, em rotura com os partidos que têm conseguido ter o apoio popular e obter as maiorias nas eleições por toda a Europa.
Em suma, precisamos de apresentar uma estratégia alternativa à Estratégia de Lisboa.

"Estratégia de Atenas", uma alternativa à Estratégia de Lisboa

Esta questão de saber o que fazer a seguir aos referendos é o problema que preocupa as lideranças das instituições da União e todo o complexo mundo da eurocracia e dos negócios, e é uma dor de cabeça para os governos e parlamentos nacionais, sobretudos dos países onde a ratificação ainda não se realizou.
Mas esta é também a grande questão para o movimento popular que se mobilizou nas campanhas dos referendos e para todas as forças progressistas que lutam por uma outra Europa.
Nestes últimos anos de múltiplas resistências, têm sido produzidas análises e argumentos contra o projecto neoliberal europeu, onde, sector a sector, tanto o Tratado Constitucional como as principais Directivas que pretendem institucionalizar a nova política foram passadas pelo crivo da crítica, tendo sido apresentadas propostas em praticamente todos os sectores de actividade. A esquerda e o movimento alterglobal possuem já um assinalável acervo de alternativas consistentes e fundamentadas.
A isto junta-se agora uma nova situação política, com mais mobilização e confiança dos povos nas suas capacidades de intervenção política.
Precisamos de transformar as nossas múltiplas propostas e análises em algo consistente e comunicável para o grande público, num documento com um nome a que todos nos possamos referir. A proposta é que lhe chamemos "Estratégia de Atenas". Porquê e como a concretizar?
Para esta "Estratégia de Atenas" dever-se-á começar a trabalhar desde já. Quem? Todos, isto é, as ONG, os comités unitários dos referendos, as associações, como a ATTAC, os partidos de esquerda, as redes europeias como o GUE/NGL grupo parlamentar da esquerda do Parlamento Europeu, o Partido da Esquerda Europeia, o NELF New European Left Forum, a EACL European Anti-Capitalist Left (Esquerda Europeia Anti-Capitalista) e outras, bem como técnicos, especialistas e estruturas académicas empenhadas na construção de alternativas, enfim todas as pessoas que considerem ter um contributo a dar em qualquer um dos múltiplos fóruns de discussão e acção de que é feito o movimento por uma outra Europa. Com vista a que, em Abril de 2006, no âmbito do Fórum Social Europeu que terá lugar em Atenas, possamos formalmente realizar uma grande assembleia que possa aprovar uma estratégia alternativa à Estratégia de Lisboa.
A partir daí, seria interessante que essa "Estratégia de Atenas" fosse editada em livro e amplamente difundida em várias línguas, passando a ser uma referência de base para o movimento. Contra a Estratégia de Lisboa, documento agregador das políticas neoliberais europeias, nós defendemos a "Estratégia de Atenas" para uma outra Europa.
Dispondo de uma referência de base comum, poderiam mais facilmente ser gerados entendimentos políticos e apresentadas alternativas, eventualmente mesmo alternativas eleitorais onde as forças em presença considerarem adequado, seja onde já há partidos de esquerda em actividade, seja em países onde a esquerda está ainda à procura das melhores soluções organizativas.
O tempo de que dispomos daqui até Abril de 2006 parece ser um prazo adequado para chegarmos a um documento de qualidade, em que todos nos possamos rever. Não é demasiado curto, nem é demasiado longo, e sobretudo tem uma data final que é aceitável por todos e que já todos temos nas nossas agendas: o próximo Fórum Social Europeu.
Esta solução permite dar, desde já, a todos os nossos trabalhos em qualquer país e em qualquer organização, um sentido e um calendário comum: estamos a dar o nosso contributo para a "Estratégia de Atenas".
Ter um nome para uma estratégia comum ajuda-nos a comunicar de forma eficaz, não só entre nós mas, o que é mais importante, comunicar com o grande público. Assim, não perdemos a fantástica energia deste momento histórico que vivemos, e respondemos às expectativas enormes que nos povos está a despertar a nova situação política na Europa.

Responder à crise de representação democrática

Os referendos em França e na Holanda colocaram na ordem do dia um outro tema que não pode ser esquecido pela esquerda. O voto dos povos foi radicalmente diferente do voto ou da opinião dos respectivos Parlamentos. Em ambos os países, todos os maiores partidos fizeram campanha pelo sim e, se a aprovação fosse feita no Parlamento, o sim teria ganho de forma esmagadora.
A esquerda sempre emitiu opiniões críticas sobre o afastamento das instituições face aos interesses e às preocupações dos povos. Mas hoje isto já não é uma matéria de opinião, conhece-se a posição dos parlamentos e a dos povos através de números inquestionáveis e constata-se que são diferentes. Outros números, não tão inquestionáveis mas suficientemente credíveis, são os das sondagens de opinião que, da Alemanha a Portugal, vão apontando no mesmo sentido. Há um problema sério e generalizado de crise de representação democrática.
Estas são condições propícias para o crescimento de perspectivas populistas, antiparlamentares e antidemocráticas. A esquerda deve, pelo seu lado, assinalar esta discrepância, considerando que tem múltiplas causas, mas apontar uma solução de reforço democrático e de aumento da correspondência entre o voto expresso pelos eleitores e a sua tradução em assentos nos parlamentos. É tempo oportuno para aprofundar e popularizar a crítica às leis eleitorais que, em muitos países, distorcem a verdade dos votos, afastam as forças de esquerda dos Parlamentos, sendo os lugares (muitos ou poucos) a que teriam direito de acordo com sua votação, ocupados por deputados dos partidos do sistema, sem que para tal tenham recebido mandato. É preciso denunciar esta verdadeira batota e contrariar este sistema de lugares ganhos na secretaria e não no campo de luta eleitoral, que faz com que muita opinião crítica seja remetida para fora do Parlamento, em prejuízo da verdade democrática. Estas leis, além de fazerem com que os Parlamentos não correspondam ao voto expresso, alteram mesmo a expressão desse voto, levando a população a votar nos “elegíveis” e não naqueles com que se identificam.
Uma campanha pela defesa de leis eleitorais decentes, que respeitem a proporcionalidade e que não tenham limites mínimos, impõe-se como instrumento com vista a facilitar alterações na relação de forças. Isto em Portugal não é muito importante, já que a nossa lei eleitoral não é das piores, embora introduza alguma distorção (pela proporcionalidade directa o Bloco deveria ter 14 deputados) mas noutros países da UE é um bloqueio fatal para a esquerda. Há limites mínimos para eleição que vão até ao 10%. Há forças com 15% dos votos e zero deputados. Esta deve ser uma campanha ofensiva que pode vir a ganhar aliados em sectores democráticos para além da esquerda.

O tempo das alternativas políticas

A criação de alternativas eleitorais, à esquerda dos sociais-democratas, transformados por todo o lado em sociais-liberais, é uma tarefa que faz o seu caminho em vários países da União.
Na Inglaterra e no País de Gales, na sequência dos massivos movimentos contra a guerra, a esquerda organizou-se num novo partido, o Respect. Nas eleições gerais de 5 de Maio, em que concorreu pela primeira vez e apenas 16 meses depois de ter sido criado, o Respect conseguiu excelentes resultados, numas eleições por círculos reduzidos com representação uninominal, sistema que provoca a máxima distorção da proporcionalidade e coloca imensas dificuldades aos partidos médios e pequenos. No círculo de Bethnal Green & Bow, o Respect ganhou, com 35,9%, elegendo George Galloway para a House of Commons, em Westminster, facto assinalável já que é a primeira vez, desde 1945, que uma força à esquerda do Labour consegue um lugar no parlamento. Noutros círculos, os melhores resultados foram 27,5%, 20,7% e 17,2% os quais, apesar de serem excelentes, não permitiram eleger deputados. Mas os dados estão lançados. Na esquerda do Labour discute-se o projecto. Figuras históricas do trabalhismo britânico colaboram nas iniciativas do Respect, apesar de ainda não se terem desvinculado do velho partido. O coordenador eleitoral dos Verdes propõe conversações para discutir a construção de alternativa à esquerda do Labour. Galloway é figura presente nos meios de comunicação nacionais e internacionais, sobretudo depois da sua presença no último dia 19 de Maio num tribunal do Senado dos Estados Unidos da América onde, com a frontalidade que lhe é habitual nos comícios de massas, acusou a política americana no Iraque. Esta intervenção, que fez eco dos dois lados do Atlântico, é hoje um sucesso em DVD. Juntamos um extracto para os nossos leitores poderem ter uma ideia do estilo da defesa apresentada contra a acusação de colaboração com o Iraque.

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[Testemunho de George Galloway no Senado dos EUA ]

…”Tive dois encontros com Saddam Hussein, um em 1994 e outro em Agosto de 2002. Por muito que se estique a língua inglesa, ninguém pode descrever isto como “muitos encontros” com Saddam Hussein. Isso é falso.
De facto, eu encontrei-me com Saddam exactamente o mesmo número de vezes que Donald Rumsfeld se encontrou com ele. A diferença é que Donald Rumsfeld se encontrou com ele para lhe vender armas e para lhe dar mapas para melhor orientar essas armas para os alvos. Eu encontrei-me com ele para tentar acabar com as sanções, o sofrimento e a guerra (…)
Senador, tudo o que eu tenho dito acerca do Iraque revelou-se verdade e o que vocês disseram mostrou-se ser mentira e 100 000 pessoas, 1600 deles soldados americanos, pagaram com a vida o vosso monte de mentiras. (…)
Eu fui um oponente de Saddam Hussein quando os governos e os negociantes britânicos e norte-americanos lhe vendiam armas e gás. Eu estava nas manifestações em frente da embaixada iraquinana enquanto vocês faziam o vosso comércio. (…)
Olhem para a Haliburton e outras empresas americanas que roubaram não só o dinheiro do Iraque, mas também o dos contribuintes americanos. Olhem para o petróleo que nem sequer é contabilizado e que está a ser embarcado para fora do Iraque sem qualquer processamento legal. (…)”

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A Alemanha é o próximo passo. A confiante burguesia alemã anda alarmada com a hipótese de criação de uma força de esquerda de grandes dimensões que possa capitalizar o imenso descontentamento com as medidas neoliberais do governo de Schroeder, descontentamento que seria suposto favorecer apenas a subida da CDU. O acordo de colaboração do PDS, die Partei des Demokratischen Sozialismus, com grande implantação na zona oriental, com a WASG Die Wahlalternative - Arbeit & soziale Gerechtigkeit que, sobretudo na zona ocidental, reúne várias correntes de esquerda, sindicalistas e dissidentes do SPD, bem como a decisão de Oskar Lafontaine, popular ex-ministro das finanças e ex-líder do SPD, de se oferecer para encabeçar essa candidatura, e ainda a possibilidade de essa aliança mobilizar fortes sectores militantes não partidários, como a ATTAC Alemanha e sectores de militância juvenil e ecologistas, tem trazido o pânico às páginas dos jornais de referência, com sondagens a admitir a eleição de 30 a 40 deputados para o Bundestag, destruindo o tradicional equilíbrio partidário alemão. Na altura em que escrevo estas linhas, não existe ainda uma decisão final sobre o processo, porém, quando a comuna for publicada, essa decisão estará tomada e alimentamos a viva esperança de que o Linkspartei (Partido da Esquerda), possa ser a grande novidade das eleições de Setembro.


G8 em Edinburgh - uma semana de lutas

George Bush e a sua política continuam a ser grandes factores de mobilização e de unidade da esquerda e de todos aqueles que se opõem à política de guerra e de exploração. Mais uma vez, nesta cimeira do G8, provou a sua eficácia: um quarto de milhão de pessoas na rua em defesa de uma política social e de paz.

Deputados suspensos por protestarem
A semana começou agitada em Edinburgh. No dia 30 de Junho, a menos de uma semana do início da cimeira propriamente dita na luxuosa estância de Gleneagles, a manifestação prevista para o dia 6 de Julho junto ao local ainda não estava autorizada. Aproveitando um dia de perguntas ao primeiro-ministro escocês no Parlamento, os deputados do Scottish Socialist Party (SSP) lembram que o Parlamento em Março tinha aprovado uma moção em defesa da liberdade de realizar este protesto, e pedem uma resposta clara. Perante a evasiva de Jack McConnell, levantam-se dos seus lugares exibindo pequenos cartazes em defesa da democracia e do Parlamento. A sessão é suspensa e, no mesmo dia e sem sequer ouvir os interessados, é tomada a medida de suspender os quatro deputados (o SSP tem 6 deputados, mas na altura só 4 estavam presentes) durante um mês, com interdição de acederem aos seus gabinetes ou a qualquer parte das instalações do Parlamento, bem como a retirada dos seus salários e dos subsídios com que são pagos os salários de toda a equipa de apoio parlamentar. Cinismo dos cinismos, como estamos em tempo de pouca actividade, a suspensão só terá efeitos em Setembro, pelo que, de momento, tudo continuou na mesma. Esta medida drástica e desproporcionada, que viola vários princípios elementares do direito e da democracia, assume o carácter de um castigo colectivo, algo há muito erradicado do direito na nossa civilização. É tempo agora de levantar uma grande campanha europeia de protesto e solidariedade com os deputados do SSP.
No entanto, a manifestação em Gleneagles acabaria por ser autorizada poucos dias depois, com intervenção do SSP e do G8 Alternatives. Este incidente seria um sinal claro do que se poderia esperar das autoridades para os próximos dias.

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O Parlamento Escocês
O Parlamento Escocês é uma criação recente. Um referendo realizado na Escócia em 11 de Setembro de 1997 aprovou a ideia da criação de um parlamento, o que viria a ser ratificado pelo Parlamento do Reino Unido no ano seguinte. As primeiras eleições realizaram-se em Maio de 1999, tendo no dia 1 de Julho tomado posse o que seria o primeiro Parlamento Escocês desde 1707.
Cada eleitor tem dois votos, num sistema misto: vota num dos 73 círculos locais, onde se elege um deputado em cada pelo sistema maioritário (candidaturas uninominais, é eleito o candidato que obtiver mais votos, seja qual for a percentagem) e vota num dos 8 círculos regionais em candidaturas de partidos ou pessoais, que elegem no total mais 56 deputados. Com este segundo voto é, de alguma forma, compensada a falta de proporcionalidade que resulta da eleição nos círculos uninominais. Os 129 deputados têm o mesmo estatuto no Parlamento.
O Scottish Socialist Party, um projecto que juntou várias sensibilidades da esquerda, com várias semelhanças com o projecto do Bloco e que participa também nas reuniões da Esquerda Anti-Capitalista Europeia, elegeu 6 deputados nas últimas eleições de 2003, 4 mulheres e 2 homens.

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Make Poverty History
Quando 250 000 pessoas desfilavam nas ruas de Edinburgh, realizavam-se em Londres e noutras cidades os concertos do Live 8. A colaboração de Bob Geldof e de Bono com o governo de Tony Blair causava algum mal-estar. Sabia-se que Gordon Brown, ministro britânico e putativo candidato a herdeiro de Blair, tinha jogado muito forte na capitalização do movimento para aparecer como o homem que marcava a cimeira, o rosto do perdão da dívida. Que tudo tinha sido feito para que a manifestação tivesse um carácter cândido e caritativo, sem referências críticas ao G8 e ao governo britânico e sobretudo sem qualquer menção à guerra, tema maior da política no Reino Unido. Que deveria ter o cunho de uma pressão cidadã sobre os 8, esperando da cimeira o melhor resultado possível. Mas o ar que se respirava na manifestação era bem diferente. Os cartazes e as t-shirts apontavam o G8 como o problema e a causa, não a solução para a pobreza no mundo. A tónica era: para fazer a pobreza passar à história, era preciso fazer a política do G8 e o capitalismo passar à história. A guerra e Bush foram temas bem presentes. Gordon Brown não apareceu.
A simpatia por Geldof ficou ainda mais abalada quando este, ao chegar à estação de Edinburgh dias depois para se dirigir a Gleneagles, comenta os incidentes que se tinham registado com a polícia como provocados por "loosers" (insulto comum em inglês e que quer dizer perdedores ou derrotados) com os quais não tinha nada a ver. O problema nem foi a sua demarcação, mas o tom do insulto. Até porque todo o movimento contra a pobreza é precisamente de solidariedade com os "loosers" deste mundo. O insulto de "looser" é bem típico da sociedade competitiva em que vivemos, mas não encaixava naquele contexto. Mas a simpatia decrescente e a dúvida sobre a atitude de Geldof, ampliadas pelas suas aparições ao lado de Blair uns dias antes, ficaram arrumadas quando os jornais publicaram a sua foto numa elegante sala de Gleneagles com Mr. e Mrs. Bush. A força desta imagem de Geldof com os "winners" esclareceu mais do que mil palavras.

O papel da polícia
O Scottish Socialist Party já pediu um inquérito à actuação da polícia durante os protestos contra o G8, nomeadamente às unidades vindas de fora da Escócia, acusadas de actuação ilegal na tentativa de intimidar os participantes e impedir a sua participação em actividades que estavam autorizadas, sobretudo na manifestação do dia 6 em Gleneagles. Anunciaram que a manifestação estava cancelada, esvaziaram os autocarros prontos para partir e tentaram (sem êxito) retirá-los do local. Prenderam o organizador. Depois fecharam os autocarros com os manifestantes lá dentro para impedir que se juntassem aos que protestavam na rua.
O exagerado aparato policial, nunca antes visto pela população da Escócia, com cavalos, cães e equipamento de combate, e os cortes de ruas que faziam para dividir os presentes em pequenos grupos foram, em algumas situações, o catalizador da revolta dos presentes e o único motivo dos protestos. Grupos de manifestantes e população local foram isolados em partes de rua durante horas a fio sem acesso a água ou a quartos de banho. Os polícias eram tantos que não havia sequer viaturas suficientes para os transportar e deslocavam-se alguns em furgões com logotipo de empresas de rent-a-car.
O custo da operação policial foi de 150 000 000 de libras. Os belos campos verdes à volta do hotel da cimeira foram completamente cercados por uma muralha metálica, com torres de vigia e câmaras de televisão. Mesmo assim, algumas centenas de manifestantes conseguiram romper o cerco durante uns minutos.
Mais de 350 pessoas foram detidas. Impediram as famílias dos que foram ouvidos no tribunal local de assistir a audições que são públicas por força de lei. Muitos polícias escondiam a sua identificação para evitarem queixas. Mesmo assim dezenas de queixas foram apresentadas.

Marxism 2005 reúne milhares em Londres
No dia a seguir à manifestação em Gleneagles, 7 de Julho, começaria em Londres um grande ciclo de conferências intitulado Marxism 2005, para onde alguns dos participantes se dirigiram. Mas as conferências não começaram nesse dia porque Londres sofreu uma série de atentados à bomba nos transportes públicos, que paralisaram completamente a circulação em toda a zona centro. Uma das bombas em autocarro foi colocada a poucos metros das instalações onde deveriam decorrer algumas das reuniões e dos hotéis onde estavam instalados os participantes estrangeiros.
Mas, no dia seguinte, com o programa alterado, o evento teve início. Mesmo amputado o programa, realizaram-se 139 conferências com mais de 4000 pessoas a assistir, isto apesar de a entrada ser paga. É de facto fantástico ver tanto interesse na discussão do marxismo e da política. Trata-se de uma realização anual promovida pelo Socialist Workers Party, um partido que participa na EACL-European Anti-Capitalist Left e que é um dos principais animadores do Respect.
Depois de uma semana de luta intensa contra o G8, toda a discussão ganha mais sentido e mais animação. A situação na Europa depois dos referendos também constituiu especial motivação. Assim, muitos dos debates se debruçaram sobre os caminhos a seguir e a ligação do debate teórico com a necessidade de dar respostas práticas a uma situação especialmente exigente para a esquerda faz da teoria um verdadeiro guia para a acção.

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