O Tratado, as leis e os salários

Publicado em: O Gaiense, 26 Abril 2008

Um acórdão do Tribunal de Justiça (TJ) europeu está a causar enorme agitação, sobretudo no centro e Norte da Europa.

No Estado alemão da Baixa-Saxónia há uma lei que obriga, nos concursos de obras públicas, os empreiteiros a pagarem aos seus trabalhadores os salários estabelecidos na convenção colectiva da construção civil. Na adjudicação assinam um documento responsabilizando-se também por fazer com que esses salários mínimos sejam respeitados pelos subempreiteiros que contratem para a obra.

A fiscalização constatou que uma construtora alemã, que realizava uma obra de toscos de um estabelecimento prisional, recorreu aos serviços de um subempreiteiro polaco, que colocou na obra 53 operários ganhando apenas 46,57% do salário mínimo previsto.

O Estado rescindiu o contrato e aplicou as penalizações previstas na lei. O caso foi para Tribunal. Em sede de recurso, o Tribunal alemão solicita ao TJ que esclareça se, face ao disposto no Tratado sobre a livre prestação de serviços, deveria aplicar ou não a lei em questão. O TJ publicou agora um acórdão dizendo que, no caso em apreço, obrigar as empresas a pagar o salário mínimo estipulado na convenção da construção civil constituía uma restrição à livre prestação de serviços na acepção do artigo 49 do Tratado.

Este artigo vai manter-se (agora com o número 56) no novo Tratado. Quando trabalhadores portugueses forem colocados em obras por essa Europa fora, lado a lado com os seus colegas dos países de acolhimento, mas ganhando menos de metade do seu salário, a quem o poderão agradecer? Às convenções colectivas? Às leis nacionais? Às directivas europeias? Não. O fundamento último invocado será sempre o disposto no Tratado de Lisboa.

O Parlamento Europeu e o direito de autor no mundo digital

Publicado em: www.esquerda.net


Bruxelas, 11 de Abril de 2008

O Parlamento Europeu discutiu na sua última sessão plenária a situação das indústrias culturais na Europa. O tema mais quente do debate foi a atitude a tomar face ao dowload e partilha de ficheiros com conteúdos culturais (sobretudo ficheiros áudio e vídeo) sem o respectivo pagamento dos direitos de autor.

O relator, um socialista francês, “chama a atenção para o facto de a criminalização dos consumidores que não procuram obter lucros não ser a solução correcta para combater a pirataria digital”. Pretendia, pelo contrário, encontrar um equilíbrio entre a possibilidade de um amplo acesso aos conteúdos culturais, a manutenção da diversidade cultural e a justa remuneração dos autores.

Mas a indústria de conteúdos e de software, com destaque para a Federação Internacional das Indústrias Fonográficas, desenvolveu uma intensa campanha pressionando os eurodeputados a adoptarem uma posição drástica face aos utilizadores de internet que violassem os direitos de autor, partilhando músicas, filmes, jogos e software. Defendiam que aos prevaricadores repetentes fosse pura e simplesmente cortado o acesso à internet. O presidente da República Francesa, Nicolas Sarkozy, já tinha proposto, no seu estilo bem característico, que os ISPs deveriam ser obrigados a punir os seus clientes que fizessem qualquer download ilegal de músicas ou outros conteúdos com o corte do acesso à internet.

Estas fortes pressões tiveram o condão de gerar uma reacção em sentido contrário. Foi mesmo apresentada à última hora uma emenda ao relatório com o seguinte texto: “[O PE] Exorta a Comissão e os Estados­Membros a reconhecerem que a Internet é uma vasta plataforma de expressão cultural, de acesso ao conhecimento e de participação democrática na criatividade europeia, que estabelece pontes entre as gerações na sociedade da informação e, consequentemente, a evitarem a adopção de medidas que vão de encontro aos direitos humanos e cívicos e que contrariam os princípios da proporcionalidade, da eficácia e do efeito dissuasor, como o corte do acesso à Internet."

A última frase desta emenda, que recusa o corte do acesso à net, foi aprovada por 314 votos contra 297 e 14 abstenções, isto é, passou com uma escassa margem de 17 votos, o que dá uma boa imagem da tensão gerada.

Foi uma pequena batalha ganha num terreno bastante difícil. O sector da cultura emprega na UE cerca de 6 milhões de pessoas e gera um negócio de 700 mil milhões de euros. Daí que todo o debate em torno da cultura esteja fortemente condicionado pelas grandes multinacionais da produção e edição, que se apresentam como defensoras dos direitos dos autores, os quais são, frequentemente, mais vítimas do que beneficiários do processo de comercialização das suas obras. A diversidade cultural, tanto entre diferentes países e regiões, como mesmo entre diferentes expressões culturais dentro do mesmo país, é outra das vítimas da concentração dos esforços de distribuição nos sectores comercialmente mais rentáveis.

A dificuldade experimentada no mundo digital pelos cobradores de direitos prende-se com a própria natureza deste mundo. Longe vão os tempos em que, entre um escritor e os seus leitores, havia necessariamente todo um longo processo de selecção editorial, um custoso processo industrial de composição, impressão e acabamento e um circuito comercial de distribuidores e livreiros. O mesmo se poderia dizer para o mundo da música e imagem com a produção, distribuição e comercialização final dos respectivos suportes. Hoje um escritor compõe os seus próprios textos e, se assim o entender, pode disponibilizá-los para todo o mundo no mesmo minuto em que acaba a escrita com um simples e grátis clic. O mesmo se pode passar no sector audiovisual.

A velha lógica da compra, que parecia totalmente natural quando se ia à livraria ou à loja de discos adquirir um objecto físico, resulta estranha no novo mundo da cultura “desmaterializada”. Para as pessoas habituadas a viver no novo ambiente digital, sobretudo para as novas gerações cujos primeiros contactos com os conteúdos culturais já foram feitos nesta fase, a forma natural de vida é a partilha e o livre acesso. E é forçoso reconhecer que esta partilha livre e gratuita de bens culturais parece ser o ambiente mais fecundo para a evolução cultural da humanidade.

Só não se encontrou ainda a forma adequada de garantir o sustento e a independência dos criadores. Hoje, a sensibilidade, que porventura haverá entre os internautas, de que é justo que os autores possam viver do seu trabalho, choca com a sensação de que do valor total de uma eventual compra, só uma pequena parte, na melhor das hipóteses, chegará de facto a ser distribuída ao autor.

Parece, no entanto, existir ainda uma real contradição de fundo entre o direito dos autores a obterem uma justa remuneração pelo seu trabalho e o direito de toda a população ao usufruto pleno, gratuito e sem entraves dos bens culturais. A busca de uma solução inovadora para esta contradição é talvez o maior desafio que está lançado a todos os que se ocupam da cultura numa perspectiva alternativa e emancipadora.

Construir ou reconstruir ?

Publicado em: O Gaiense, 19 de Abril de 2008

Participei há dias numa conferência do Conselho dos Arquitectos Europeus em que um dos temas em análise foi a "baukultur", um conceito introduzido pelos alemães e que foi assumido pela Carta de Leipzig sobre Cidades Europeias Sustentáveis, documento da UE sobre política urbana. Esta nova "cultura de construção" articula os aspectos culturais, económicos, tecnológicos e sociais do processo de planear, projectar e construir.

Há interessantes questões em debate. Por exemplo, na maioria das cidades há construções degradadas, parte delas ocupadas, outras abandonadas. A prioridade absoluta à recuperação parece ser mais racional do que o abandono, que tem como contrapartida o aumento das áreas de construção nova, cada vez mais afastadas dos centros urbanos, destruindo espaços naturais e agrícolas e obrigando a mais tempo de enervantes e poluentes deslocações diárias.

A renovação dos edifícios faz-se no conceito de utilização, nas condições físicas e na eficiência energética. As novas exigências da vida recomendam uma readaptação da distribuição do espaço nas antigas casas e prédios de habitação. Velhos edifícios industriais e comerciais podem ganhar nova vida como habitações, espaços comerciais ou equipamentos colectivos. As construções antigas têm em geral um comportamento energético deficiente, que produz desconforto e um gasto excessivo em energia; recuperá-las nesta funcionalidade tem um impacte ambiental significativo e é uma interessante área de negócio e de criação de emprego.

Muitas PMEs dedicadas à construção, que atravessam um período difícil, poderiam alicerçar na actividade de recuperação de imóveis a sua própria recuperação. Melhor ainda se tal for feito com reforço das economias locais e das oportunidades de trabalho nas próprias zonas envolvidas na renovação, já que esta é uma actividade de mão-de-obra intensiva. E há programas europeus com fundos disponíveis para o desenvolvimento integrado de áreas urbanas que necessitem de transformação urgente.

Estónia: a luta pelos símbolos

Texto de Renato Soeiro e Miguel Portas, em Tallinn
Publicado em: Global em Maio de 2007


Tallinn, capital da Estónia - Na tarde de 27 de Abril, mil a dois mil manifestantes, em regra muito jovens, acusam a polícia de ser “fascistii”. Não têm grande experiência neste tipo de andanças. Vários vestem-se à moda dos jovens das banlieues de Paris, com blusões de capuz, para dificultar a identificação. Pertencem à comunidade russa de Tallinn. São empurrados pelos serviços de segurança que, a pouco e pouco, limpam a praça. Os miúdos desafiam abertamente os polícias que, em raides selectivos, apanham os mais combativos.
Um pouco mais tarde, irrompe por uma avenida adjacente, um grupo de duas centenas de nacionalistas estónios, também muito novos. De bandeira nacional, a polícia deixa-os passar perto dos adversários. O confronto, contudo, não se concretizou. Ele sobra, inteiro, para a polícia. Ao terceiro dia de conflitos de rua, há dezenas de feridos e as detenções elevam-se a quase um milhar. A destruição de vitrinas e paragens de autocarro pelo centro da cidade, sinalizam, do lado russo, a fúria dos mais jovens. É impossível a um observador mais experimentado neste tipo de acontecimentos, não constatar uma estranha inépcia securitária na protecção da propriedade. Durante três dias, as forças de repressão fecharam todas as entradas no centro medieval de Tallinn e sua envolvente. Recorreram a inúmeros check points e gradeamentos. Com o coração da cidade bloqueado, sem trânsito automóvel ou de peões, e com apelos governamentais a que os cidadãos não saíssem de suas casas, grupos de miúdos puderam, durante três noites, dar largas à sua ira.
Não se pode dizer que os agentes não levassem a sério o papel que o governo lhes destinou: “estou aqui a defender o meu país”, confessou-nos um deles. Na fronteira, cidadãos da vizinha Letónia foram barrados desde que circulassem com símbolos pró-russos ou de memória soviética. E autocarros que se dirigissem para Tallinn, a partir de outras cidades da Estónia, foram igualmente impedidos de aí chegar. Do lado do governo, o dispositivo de forças parecia agir como se estivesse em marcha uma insurreição popular. Como foi, então, possível, a destruição de tantas montras? A resposta talvez se encontre no modo como os jornais e as televisões abordaram os acontecimentos: com abundante profusão de imagens destinadas a martelar o “vandalismo da canalha”. Um dos principais jornais da Estónia, na sua edição de 28 de Abril, publica 16 páginas de fotos chocantes de incêndios e destruição de lojas, carros virados, e manifestantes carregados com a mercearia retirada das lojas. Todas as suas páginas, capa incluída, têm como cabeçalho uma bandeira da Estónia no chão a arder...

UMA ESTÁTUA NO CENTRO DO MOTIM

Quando, em Agosto de 1991, o Soviete Supremo da República da Estónia ratificou uma Resolução que estabelecia a sua independência face à URSS, mais de um terço da população descendia dos imigrantes russos que afluíram aos países bálticos após o fim da II guerra mundial.
O que então aconteceu na Estónia não diferiu, na substância, dos outros países do Leste europeu. Na transição do capitalismo de Estado para o capitalismo tout court, e da ditadura para a democracia parlamentar, os símbolos foram os primeiros a cair. De todas as estátuas do período soviético, só uma escapou à limpeza: a do “soldado de bronze”, que assinalava a libertação do nazismo. A estátua, situada numa colina nas proximidades do centro medieval, “guardava” ainda uma vala onde repousavam vários corpos de soldados soviéticos. Foi a decisão de trasladar o conjunto para um cemitério militar da periferia que esteve na origem dos conflitos. Dificilmente um monumento poderia traduzir mais drasticamente as diferentes percepções da História. A minoria russa considera os soldados soviéticos como libertadores, e a união da Estónia com a Rússia, como uma aliança natural; o nacionalismo estónio, pelo contrário, considera que o último meio século foi de ocupação ilegal, e que os russos não passam de ocupantes e colonialistas. Os mais radicais consideram mesmo os nazis como libertadores... A estátua de homenagem ao soldado soviético, símbolo material deste período, é vista, portanto, sob olhares bem distintos.
Seja como for, o memorial nunca deixou de ser objecto de romagem por ocasião das tradicionais manifestações do 9 de Maio, o dia que assinala a vitória sobre o nazismo na Europa. Mas nos últimos anos, o mero encontro evocativo de veteranos da Segunda Grande Guerra, transformou-se num momento de afirmação de massas, onde a presença de símbolos russos e soviéticos tinha o condão de irritar os governos e os nacionalistas estónios. O memorial instituiu-se em símbolo de uma comunidade que se sente discriminada no país. Não se pode dizer que lhe faltem razões. Em 1992, recuperando uma antiga lei da nacionalidade, a cidadania automática só foi dada a quem já a tinha antes de 1940, e aos seus descendentes. Só os estónios de “sangue puro” puderam votar no referendo constitucional. Todos os outros - e entre estes a população de origem russa - foram obrigados a realizar exames de língua e de História estónias, internacionalmente considerados como extraordinariamente exigentes, se quisessem aceder à nacionalidade do país em que nasceram. O resultado desta política está hoje à vista: 15% da população da Estónia não tem direitos de cidadania e é discriminada nos empregos e nos serviços sociais. Os motins de fins de Abril reflectem o profundo descontentamento que grassa entre esta minoria nacional. Mas não só. Disputas de natureza geo-estratégica entre a Rússia e um nacionalismo estónio alinhado com Bruxelas e Washington, jogaram também o seu papel.

ESCALADA

Em 2006, os nacionalistas estónios decidiram confrontar os manifestantes do 9 de Maio. Desde então, as tensões subiram. A polícia passou a controlar a zona e o parlamento estónio passou ao ataque. Em Janeiro deste ano, e com boa dose de cinismo, aprovou, apenas com 6 votos contra, que as normas internacionais de respeito pelas sepulturas dos mortos de guerra, implicavam a transferência dos restos mortais dos soldados russos para um cemitério... A escalada prossegue em Fevereiro, quando o Parlamento aprova, por 46 votos contra 44, uma lei que proíbe monumentos que exaltem a União Soviética. O texto exigia o desmantelamento do monumento no prazo de 30 dias, mas o presidente vetou-o invocando a sua inconstitucionalidade.
Com a polémica a subir de tom – ela marcou as legislativas de Março - criaram-se condições legais para a trasladação, a concretizar antes das celebrações do 9 de Maio. Escusado será dizer que a minoria russa respondeu à ofensiva nacionalista. Para além da permanente deposição de flores e de velas, grupos de “guardas da noite” passaram a fazer vigília nocturna do monumento. Estónios garantem que tais permanências eram pagas pela embaixada da Rússia, que garantia igualmente os transportes para as manifestações. Como diria um italiano, si non é vero, é benne trovato...
Quando, a 25 de Abril, chega a Tallinn um enorme aparato policial que cobre o monumento com uma tenda branca e veda a colina, todas as condições para a tragédia estavam reunidas. A comunidade russa revolta-se nessa mesma noite. Alguns milhares de manifestan¬tes são então violentamente dispersados pela polícia. Um morto, dezenas de feridos e três centenas de detidos selam a noite. O resto é conhecido. Moscovo corta relações com Tallinn e Bruxelas, em¬bora em diferentes registos, alinha ao lado do seu Estado-membro. Num repente, os motins de Tallinn ocupam o centro das relações entre Moscovo e a União. Mas, verdadeiramente, o alvo de Vladimir Putin é Washington. Ele vê nas atitudes “anti-russas” do governo estónio um episódio mais do seu alinhamento com G.W. Bush, que procura o apoio europeu para a instalação de novas bases e equipamentos militares anti-míssil no Leste europeu.

Direita pura e dura vence em França

Publicado em: Global em Maio de 2007

Trabalho - autoridade – mérito: eis a trilogia de Sakozy no seu discurso de vitória na noite de 6 de Maio. Esqueçam as ideias obsoletas de liberté, égalité e fraternité, bem como os sonhos absurdos do Maio de 68. Franceses preparem-se: a mudança vem mesmo aí! Não se pode negar a arte de um candidato que, sendo um ministro marcante do governo de direita ao longo dos últimos anos, com um papel chave nos acontecimentos que criaram revoltas atrás de revoltas, se conseguiu apresentar a si próprio como o rosto da mudança... e apresentar a candidata da oposição como a continuidade. A ideia de mudança era de facto a chave para o sucesso numa França essencialmente insatisfeita e ansiosa, como se vira no referendo ao Tratado Constitucional. A insegurança, ou melhor, a multiplicação dos sentimentos de insegurança, são sempre um terreno fértil para propostas fortes. E essa era a única das críticas que o novo presidente não merecia. Sarkozy optou por uma campanha forte, afirmativa e claramente situada à direita, o que se revelou decisivo para aglutinar mais de metade dos eleitores. Do outro lado, Ségolène Royal tentou precisamente o contrário: opções tímidas e um estilo suave, que evitava a clarificação política em nome da conquista do centro. Sarkozy encerra em França um ciclo político. Não apenas no que se refere ao modelo social e à tradição de intervenção do Estado na economia, mas também no posicionamento internacional da França. A sua vitória agrada a Bush, que terá agora uma França mais atlantista e colaborante. Agrada a Downing street pelas mesmas razões e mais uma, fundamental para o governo inglês, que é o facto de Sarkozy querer resolver o problema do tratado europeu sem recurso a referendo, e com uma redacção minimal. Eis o que, tanto para o Labour como para os Conserva dores, soa a música celestial. A sua Europa é a do Directório dos grandes países e nisso coincidem com Sarkozy. O referendo, pesadelo maior dos dois grandes partidos do Reino Unido, pode ter começado a resolver-se ontem em França. Nem mesmo Durão Barroso ficou descontente. Ele quer ultrapassar o impasse constitucional seja como for. Também na questão da Turquia, onde os governantes europeus se sentiam obrigados a dizer o que não pensam, Sarkozy trouxe algum alívio: frontalmente contra a adesão, numa matéria que exige unanimidade, pode ter resolvido o assunto sem que os restantes governos tenham o incómodo darem o dito pelo não dito. Mais incrível ainda é a afirmação do ex-ministro, já na qualidade de futuro presidente, de que “esta noite, a França está de volta à Europa”. Por onde terá andado a França nos últimos anos em que ele esteve no governo? E o que vai mudar agora? Algo. A palavra-chave de Sakozy em matéria europeia é “protecção”. Conjura os seus pares europeus “a ouvirem a voz dos povos que querem ser protegidos”, “a não ficarem surdos perante a cólera dos povos que vêm a UE não como uma protecção, mas como o cavalo de Tróia de todas as ameaças contidas nas transformações do mundo”. A nova França recuperará a sua grandeza na Europa e no mundo reforçando o seu proteccionismo. Pode ser absurdo, mas agradou aos eleitores. Não por muito tempo, mas agradou. A tarefa da esquerda, agora, é a de resistir aos tempos difíceis que se avizinham. Em França, evidentemente. Mas também por toda a Europa terá de estar à altura das responsabilidades que a emergência das novas direitas vem colocar.

IRLANDA: os muros também se abatem


Publicado em: Global, Abril de 2007

Quando, a 26 de Março, os líderes do Sinn Féin e do Democratic Unionist Party (DUP) se sentaram pela primeira vez face a face no palácio de Stormont em Belfast, todos sentiram o peso enorme deste encontro entre os representantes máximos de uma violenta luta secular que marcou a vida de várias gerações.
Todos sabiam também que as memórias desta guerra não se apagarão tão cedo. As suas cicatrizes nas famílias e nas comunidades não desaparecerão facilmente. Nem sequer as marcas que deixaram em Belfast, ainda cheia de grades, torres de vigia e câmaras de filmar. Ainda repleta de muros que dividem bairros, cortam ruas, e separam em dois os jardins onde crianças brincam e olham as árvores altas de além-muro sem nunca terem visto os rostos das suas congéneres que brincam do outro lado.
Mas, para além das divisões do passado, os dirigentes compreenderam que os escassos 27 mil votos e 3,9% de percentagem que nas últimas eleições separaram o DUP do Sinn Féin, significam que as duas forças políticas estão para ficar e que as populações que neles votaram são realidades incontornáveis.
Ambos os partidos assumiram a responsabilidade de dotar esta parte da Irlanda de um parlamento e de um governo próprios, que possam promover um desenvolvimento que não pode esperar por decisões tomadas em Londres, ou mesmo em Dublin. Numa Europa que esbate as suas barreiras, o contraste do sucesso do “tigre celta” com o atraso que sofrem os seus irmãos do Norte torna-se ainda mais insuportável.
É grande a esperança neste governo de unidade, que não se limita ao DUP e ao Sinn Féin, já que os acordos de St. Andrews - como antes, o da Sexta-feira Santa - prevêem a formação do governo a partir de uma aplicação do método de Hondt aos resultados eleitorais.
O mundo saudou a coragem realista partilhada pelos dois protagonistas desta histórica convergência forçada pela vida. Mas há uma diferença entre Paisley e Adams que foi pouco notada e comentada: essa diferença chama-se Irlanda. O DUP é um partido do Norte, dos 6 condados sob domínio britânico. O Sinn Féin é um partido da Irlanda, dos 6 condados do Norte e dos 26 condados da República. O partido de Gerry Adams tem uma agenda política para toda a Irlanda, e o seu peso aumenta dos dois lados da linha que marca a fatídica partição da ilha. Para o Sinn Féin, as eleições de Março nos 6 condados foram um momento de um processo eleitoral que prossegue em Maio ou Junho nos outros 26, com propostas comuns. Propostas para a unificação, é claro, mas também para a economia, para a justiça e a segurança, para os serviços públicos e para a política social de toda a ilha. Não é por acaso que as suas duas deputadas europeias integram o GUE/NGL, a bancada situada mais à esquerda no Parlamento Europeu. A prazo, esta marca, já presente nos pioneiros do movimento nacionalista e republicano, poderá fazer toda a diferença.
A participação no governo do Norte não deixará de ser observada com toda a atenção pelos eleitores da República, a braços com os problemas causados por um desenvolvimento rápido, mas profundamente marcado pelas desigualdades. No último congresso do Sinn Féin, realizado em Dublin no fim-de-semana anterior às eleições, a novidade que mais atraiu a atenção dos jornalistas foi a presença e a intervenção, pela primeira vez, de dirigentes dos maiores sindicatos e do Irish Congress of Trade Unions, a confederação sindical irlandesa. Até agora as trade union frequentavam
os congressos do partido trabalhista social-democrata. Hoje, no programa e nas propostas do Sinn Féin, os irlandeses começam a entrever um futuro diferente. An Ireland of equals. Unida, democrática e justa.

Com votos do PSE e da direita, aprovada a Directiva Bolkestein

Publicado em: Global, Novembro de 2006
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O Parlamento Europeu aprovou a chamada directiva Bolkestein que permite trabalhadores imigrantes ganharem o salário do país de origem, em vez da remuneração que ganham todos os trabalhadores nacionais do país de destino. Significa que um trabalhador português pode ser obrigado a trabalhar na Alemanha por um salário quatro vezes menor ao de um trabalhador alemão. Esta aprovação foi feita com os votos dos socialistas e da direita. A esquerda e os verdes propuseram ainda um conjunto de alterações pontuais que iam no sentido de proteger os direitos de quem trabalha. As alterações foram rejeitadas pelos signatários do compromisso. Mas o grupo socialista partiu-se: grande parte dos eurodeputados franceses, italianos e gregos do grupo do Partido Socialista Europeu votaram essas emendas com a ala esquerda do PE. O mesmo não aconteceu com os eurodeputados socialistas portugueses que votaram a favor desta medida.
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Estrasburgo, 15 Nov. 2006 - No momento em que escrevo estas linhas, acaba de ser votada no Parlamento Europeu a Directiva sobre Serviços no Mercado Interno, que ficou conhecida como directiva Bolkestein. Trata-se de uma votação em segunda leitura, após uma série de alterações ao texto inicial ter sido introduzida pelo PE na primeira leitura (ver artigo anterior "Directiva Bolkestein: uma questão central da luta de classes em curso na Europa"). Os grandes grupos políticos (PPE e PSE), que tinham feito um mau acordo aquando da primeira leitura, capitulam agora face ao seu próprio compromisso anterior, sob pressão do comissário Charles McCreevy, herdeiro, na Comissão Barroso, do pelouro do Mercado Interno, de que Fritz Bolkestein era responsável na anterior Comissão Prodi. McCreevy ameaçou que não aceitaria nenhuma alteração do Parlamento face à recente posição comum proposta pelo Conselho, “tão difícil de conseguir”, segundo afirmou. PPE e PSE poderiam e deveriam ter reagido a esta chantagem, defendendo as prerrogativas do Parlamento, que pode aprovar as posições que entender. No caso de não coincidirem com a posição comum do Conselho, obrigariam a directiva a entrar numa terceira fase de negociações, a chamada conciliação. Com esta capitulação, o processo legislativo termina aqui e a terceira fase é anulada. Jogo viciado na segunda parte, não há prolongamento. Esta posição comum poderia ter sido vetada à nascença por qualquer dos governos; sobretudo, poder-se-ia alimentar a esperança de que esse veto fosse introduzido por algum dos governos em que participam forças de esquerda. Lamentavelmente, os governos estiveram todos de acordo, todos do lado errado nesta luta. É precisamente essa unanimidade que hoje dá força ao herdeiro de Bolkestein. A posição comum do Conselho (que é, desde hoje, também a do Parlamento), atacando eventuais medidas com que os Estados Membros possam querer proteger os seus serviços sociais ou os direitos dos trabalhadores, atribui um peso exagerado ao poder da Comissão e às “interpretações” que vierem a ser feitas pelo Tribunal de Justiça no que respeita ao controle de quaisquer novas disposições legislativas, regulamentares e administrativas que os Estados Membros adoptem neste campo. A ideia de subordinar à legislação comunitária todas as disposições dos Estados Membros nesta matéria, embora se aplique a todos, tem um alvo preferencial: as práticas laborais dos países nórdicos, onde as taxas de sindicalização são muito elevadas e o forte poder negocial dos sindicatos tem construído um conjunto de relações laborais que produz uma redistribuição de rendimentos mais equitativa do que noutros países menos desenvolvidos, que passarão agora, na prática, a ser o novo padrão de referência europeu. É demasiado incómodo para a propaganda neoliberal que os países onde o leque salarial é mais pequeno, onde a riqueza está menos concentrada, e onde os serviços públicos e a protecção social pesam mais nas contas públicas, sejam precisamente os países mais ricos e desenvolvidos do mundo, segundo todos os índices publicados. A desregulamentação, os cortes nas despesas sociais e nos investimentos e serviços do Estado, as baixas taxas de sindicalização, a concentração da riqueza, a diferenciação exagerada de rendimentos, e o aumento da precariedade laboral e social devem ser encarados como factores de empobrecimento geral da população e obstáculos ao desenvolvimento. Não são as condições indispensáveis para o progresso económico e a modernização, são, isso sim, as marcas do subdesenvolvimento. Marcas demasiado fortes no nosso país.

A escola com assinatura

Texto de Miguel Portas e Renato Soeiro
Publicado em: Global, Fevereiro de 2006

1. Os recentes acontecimentos de Paris obrigam os responsáveis políticos a um rigoroso exame das políticas que têm sido aplicadas. É verdade que a revolta se deu em zonas de subúrbio de cidades francesas - e não em Londres, Berlim, Madrid ou Lis boa. Mas todos reconheceremos, sem dificuldade, que as condições materiais de existência nesses territórios são extensíveis ao conjunto dos subúrbios de todas as nossas grandes cidades. Essas condições podem ser resumidas numa só palavra: discriminação. Ou melhor: dupla discriminação. A discriminação inerente à vida nas periferias e a discriminação que vem da cor da pele, do nome que se usa ou da religião que se pratica.

2. Os acontecimentos de Paris revelam, acima de tudo, a fragilidade e o estado de regres são em que se encontram as políticas públicas – em particular, as de proximidade –, num contexto em que todas se encontram sob forte ataque ideológico. Num mundo onde a mão invisível do Mercado condiciona os comportamentos sociais e determina os sonhos e as expectativas sociais, as políticas sociais que temos revelam-se incapazes de suster a queda de muitos nos abismos da vida.

3. Tanto ou mais do que a falta de empregos, a revolta francesa é reveladora da crise da escola pública. Tivesse a escola outro sucesso, e a pressão da procura no mercado de trabalho seria bem distinta. Os números não enganam: a grande maioria dos jovens detidos estava em ruptura com as respectivas famílias e tinha abandonado precocemente o sistema educativo. Na sua maioria, são franceses descendentes, em segunda e terceira geração, de imigrantes do norte de África, onde a incidência do desemprego é o dobro das, já de si, elevadas taxas de desocupação nos bairros das periferias de Paris. A importância da escola não resulta apenas do que ela representa enquanto aquisição civilizacional – nestes bairros, é o mais importante instrumento de combate ao desemprego precoce e desqualificado.

4. Se tivéssemos que hierarquizar as grandes aquisições que o século XX trouxe à Humanidade, a escola pública encontrar-se-ia, seguramente, entre elas. A democratização do acesso ao ensino alterou em profundidade as relações de poder nas famílias, os mercados de trabalho, e os níveis de formação e civilidade existentes nas nossas sociedades. Mas a escola não existe sozinha. Ela concorre com a família, a rua, a televisão e as novas comunicações. Nas últimas décadas, a centralidade que a escola antes ocupara nos processos educativos entrou em crise - uma crise de centralidade, de lugar.

5. A resposta que os sistemas educativos têm procurado encontrar para essa crise é, não raro, a da “facilidade”: melhorar os índices de sucesso escolar por via da diminuição da exigência. É uma escolha errada. A escola tem é que se reinventar, recriando-se como território de novas e antigas sociabilidades. Essa reinvenção é mais urgente nas periferias das grandes metrópoles. Precisamos de uma “escola menos escola”, de espaços que sejam, ao mesmo tempo, cosmopolitas e identificadores do lugar onde a escola existe, que se afirme como motivo de orgulho da comunidade em que se integra e se projecte como janela do bairro para o mundo.

6. Não precisamos de escolas que se imitem umas às outras. Precisamos de projectos educativos sensíveis ao lugar onde existem e às diferenças que aí se manifestam. Elas, que hoje discriminam, podem constituir-se em oportunidades para todos. Na condição das escolas encontrarem as suas razões de ser e inspiração nos miúdos e nas populações concretas que servem. As escolas dos bairros devem transformar-se em espaços comunitários e inter-geracionais. Devem funcionar durante a semana e ao fim-de-semana, servindo diferentes tipos de formação e actividades. E devem ter autonomia contratualizada com o ministério para desenvolverem os seus focos de atenção e novas potencialidades formativas. A alternativa a esta revolução é a derrota ante a concorrência das fontes informais de educação e formação.

7. Os países europeus têm diferentes abordagens ao problema da integração. Nenhuma delas resolveu o problema do gueto. Nem a escola, de per si, o pode fazer. Mas ela pode - e tem a obrigação - de combater o gueto dentro do gueto, enquanto este não acaba. A chave para essa escola de combate é uma nova articulação entre o direito à igualdade e o direito à diversidade. A integração não é, como tem sido, assimilação. Nem pode reproduzir modelos de “desenvolvimento separado”, como o faz a tradição anglo-saxónica. Essa nova articulação não é um meio caminho entre os modelos multiculturais e integracionistas. É uma nova síntese, uma mudança de paradigma dos próprios projectos educativos.

8. Nessa mudança, a questão da língua é decisiva. A língua não é uma mera técnica ou instrumento que permite a comunicação. É um modo de pensar. É, até, um modo de sonhar. A escola tem-se preocupado em ensinar a língua do país de acolhimento aos descendentes dos imigrantes. Tem-se preocupado, também, em ensinar uma segunda língua, em regra o inglês, a todas as crianças. Tudo isto é correcto, mas não chega. Onde as comunidades de imigrantes são socialmente relevantes, é indispensável que a escola proporcione também o ensino das suas línguas maternas.

9. Na Europa, isto tem sido feito de modo incipiente e limitado. Em Portugal nem isso. Incipiente porque os dois modelos dominantes estão condenados ao fracasso. O mais generalizado assenta em turbo-professores que andam de escola em escola, em horários extra-curriculares, dando lições de língua materna aos filhos dos imigrantes. Todos os anos, a procura deste tipo de ensino diminui. Porque são os Estados de origem dos imigrantes que pagam estes professores, e o dinheiro escasseia. E porque, à medida que as gerações passam, os pais e as crianças dão prioridade a outras escolhas. O segundo modelo não resulta melhor: trata-se de incluir línguas maternas de imigração no leque de opções curriculares de ensino de línguas estrangeiras nas escolas. Sucede que os pais escolhem invariavelmente o inglês. E as outras línguas são “democraticamente” afastadas.

10. As escolas europeias, destinadas aos filhos dos funcionários e representantes da União Europeia, funcionam noutro registo: são, de raiz, bilingues. Ensina-se e aprende-se em duas línguas, a de origem dos alunos e a de destino. E, para lá destas, que são línguas de trabalho, aprendem-se ainda outras línguas estrangeiras. É um ensino de luxo para imigrantes de luxo. Mas porque hão-de os filhos de Bruxelas ter mais direitos do que os dos subúrbios das nossas cidades? Porque hão-de uns ser filhos e outros enteados? Esta a questão de sempre, que justifica combates de sempre.

11. Mas a escola multilingue não é apenas um instrumento de luta contra a discriminação. É uma alavanca para o entendimento intercultural. A integração dos imigrantes não deve ser feita por esmagamento das diferenças, pelo abandono das línguas e culturas de origem. Nem estas devem sobreviver fechadas e separadas. Pelo contrário, o que nos enriquece é a incorporação e a “mistura” das diferentes raízes num património comum cosmopolita. A nossa Europa passa por aqui. Pela certeza de que o resultado da interacção entre culturas é muito mais do que a mera soma ou justaposição das parcelas que interagem.

12. Eis as razões que levaram o Bloco a apresentar ao Parlamento Europeu um relatório – aprovado no fim de Outubro passado – que estabelece o apoio da UE aos projectos educativos que pratiquem a Aprendizagem Integrada de Línguas e Conteúdos. E que nos levará, brevemente, a traduzir esta mesma proposta na legislação nacional.

Notas sobre uma Europa em movimento


Publicado em: Revista A Comuna n°9, Julho de 2005

Não há Constituição, mas há estratégia

O plano de transformação da Europa num espaço adaptado ao novo projecto neoliberal está num momento crucial.
A nova Europa da desregulamentação, da privatização, da minimização dos serviços públicos, está a ser construída em todos os países (a ritmo diferenciado, mas com um rumo semelhante) a partir de uma dupla pressão:

- por um lado da economia “real”, pressão exercida pelas empresas, com destaque para as grandes multinacionais, criando situações de facto em que as novas condições de exploração se tentam impor como naturais, como uma inevitabilidade que se pode discutir mas que não se pode evitar, e que é apresentada como um resultado da globalização e da concorrência internacional, isto é, de forças externas cujo controle não está ao nosso alcance

- por outro lado, uma pressão do aparelho político, que visa uma adaptação legislativa e institucional a essas mesmas condições, criando ao nível nacional, mas sobretudo ao nível da União Europeia, a superestrutura que facilite o desenvolvimento daquele projecto, procedendo ao desmantelamento sistemático das estruturas e regras herdadas da fase de desenvolvimento keynesiano do período do pós-guerra, que ficaram conhecidas como Modelo Social Europeu, resultado também de um período muito marcado pela força das reivindicações das classes trabalhadores numa altura em que a situação política europeia e mundial lhes era menos desfavorável.
O que existe hoje na Europa não corresponde nem às necessidades do capitalismo “moderno”, nem às necessidades básicas de boa parte dos trabalhadores para terem uma vida minimamente digna.
Tempo, portanto, de instabilidade e de mudança.

No que respeita ao campo político e institucional, ao nível da União, para além da produção de variada legislação sectorial, de que temos tido recentes exemplos com a directiva dos serviços no mercado interno (dita Bolkestein), a directiva relativa ao tempo de trabalho ou a da privatização dos serviços portuários (só para mencionar algumas que ainda andam encalhadas no complexo processo de aprovação por co-decisão entre o Parlamento Europeu e o Conselho), e do problemático Pacto de Estabilidade e Crescimento, dois outros documentos de fundo, de maior envergadura e importância se destacam: a Estratégia de Lisboa e o Tratado que Estabelece (estabelecia) uma Constituição para a Europa (TCE).

A Estratégia de Lisboa, assim chamada por ter sido aprovada num Conselho Europeu realizado em 2000 em Lisboa, durante a presidência portuguesa da UE encabeçada por Guterres, definia os grandes objectivos da política económica e social a atingir no período de 10 anos, até 2010, portanto. Em torno desta estratégia se gerou o suficiente consenso, e este documento passou a ser referência obrigatória de todas as acções comunitárias: estas serão de apoiar ou não consoante a sua conformidade e o seu contributo para a Estratégia de Lisboa.

Estando nós em 2005, o tempo foi de balanço a meio termo da realização da estratégia. Conclusão: um desastre, dizem no seu relatório os eurocratas do Grupo de Alto Nível, presidido por Wim Kok, que foi criado para avaliar a situação. Os políticos deitam mãos à obra uma vez mais, e aprovam no princípio deste ano, no Conselho Europeu da Primavera, uma revisão a meio termo da dita estratégia, mantendo o rumo, mas simplificando as acções, reduzindo o leque de prioridades para melhorar a focalização nos aspectos considerados essenciais. A Estratégia de Lisboa foi considerada “a principal prioridade da UE nos próximos cinco anos”. Atendendo a que só há 5 para realizar os mesmos ambiciosos objectivos propostos para 2010, e que a situação hoje não é melhor do que era em 2000, a tarefa afigura-se difícil, mesmo aos seus autores.
Sendo a Estratégia de Lisboa um documento da Comissão com mera aprovação intergovernamental e do PE, não sofreu os sobressaltos que viriam a marcar a vida recente do TCE. Sobre este Tratado, que consolidava e constitucionalizava as opções políticas e económicas e definia o funcionamento das instituições, correu-se o risco de o submeter a referendos, com os resultados que são sabidos.
Dos dois documentos chave, salvou-se, de momento, a Estratégia. Que todos apoiam, mas cada qual lê conforme lhe convém.
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[ A ESTRATÉGIA DE LISBOA ]
Na cimeira de Lisboa, em Março de 2000, os Chefes de Estado e de Governo definiram um novo objectivo estratégico para a União Europeia: tornar a UE “na economia baseada no conhecimento mais dinâmica e competitiva do mundo, capaz de garantir um crescimento económico sustentável, com mais e melhores empregos, e com maior coesão social.”
Tratando-se de um documento chave da UE, da sua principal prioridade, esperar-se-ia uma abordagem mais fundamentada da viabilidade dos objectivos e da definição dos meios para os alcançar. Mas não só. Repare-se na problemática concepção que subjaz a este simples parágrafo. Define-se o objectivo com base numa relação de comparação: ser mais do que os outros. Isto tem como consequência que, se houvesse na UE um fantástico progresso no sentido pretendido, mas outra qualquer região do mundo tivesse conseguido também progredir no mesmo sentido e fosse em 2010 mais avançada do que a UE, o objectivo teria de ser considerado como não atingido, uma derrota, portanto, apesar da situação ser “excelente”. Pelo contrário, se a UE estagnasse ou mesmo regredisse, mas as outras regiões regredissem ainda mais do que nós, poderíamos chegar a 2010 numa situação miserável mas com o objectivo atingido, uma vitória, portanto, apesar da situação ser uma lástima.
Esta infeliz formulação de "ser mais do que" corresponde ao espírito mais negativo dos tempos que correm e está coerente com o próprio objectivo: fazer da UE a economia mais competitiva do mundo. É de uma competição que se trata e esta característica envenena todas as políticas que se subordinam à estratégia, e que são, de facto, todas as políticas relevantes da União; a pergunta “contribui para a Estratégia de Lisboa?” que é feita sistematicamente na avaliação de qualquer projecto, deve ser entendida como: contribui para a competitividade? A redução dos salários, da protecção social, dos serviços públicos, do investimento na saúde e no ensino, as privatizações, tudo tem sido justificado em nome da competitividade e da Estratégia de Lisboa.
Não é difícil compreender que muitas das medidas e investimentos mais positivos que são propostos na Europa não passam neste exame. E que a competitividade é claramente o fio condutor de todas as directivas hoje em discussão e que o movimento social se esforça por derrotar, até porque de um modo geral a competitividade (da UE com as outras regiões do mundo) não cria bons empregos, não promove a coesão social, nem o desenvolvimento sustentável, antes pelo contrário, é precisamente a sua ausência que torna as regiões nossas “concorrentes” mais competitivas. Para um novo rumo, a Europa precisa de outra estratégia. Construí-la é uma tarefa central do momento presente.

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Blair ao ataque: o plano B existe
É o B de Blair e de Brown, de Bush, de Berlusconi, de Barroso


Tony Blair, na sua hábil intervenção no Parlamento Europeu que marcou o arranque do semestre da presidência britânica do Conselho Europeu, utilizou a Estratégia de Lisboa para o seu ajuste de contas com os franceses e para justificar o seu bloqueio à aprovação das perspectivas financeiras para o próximo período 2007-2013. Perguntou se os deputados europeus entendiam que, para conseguir em cinco anos fazer da UE o espaço económico mais competitivo do mundo baseado no conhecimento, faz sentido continuar a investir a fatia de leão dos fundos europeus na agricultura - tarefa que ocupa uma percentagem mínima, e cada vez menor, da população -, enquanto um investimento muito inferior é feito na educação, na investigação e na tecnologia, essas sim, âncoras da Estratégia de Lisboa e da construção do futuro.
A terceira via não vai perder esta oportunidade de crise na velha Europa para acertar contas com os seus parceiros/inimigos da Internacional Socialista e com os governos do continente que se opuseram à sua política de alinhamento com Washington. O argumento é simples: vocês falharam na criação de empregos, principal problema da União e a principal razão dos nãos nos referendos; a nossa solução, mais liberal e mais privatizadora, provou ser o caminho. Para Blair, a presidência britânica não podia ter calhado em melhor altura. Ainda por cima liberto do pesadelo de ter de fazer o referendo constitucional, onde não podia afastar-se completamente do sim, cujas hipóteses de vitória eram verdadeiramente diminutas.
Este é um problema sério para o movimento popular: há a possibilidade real de a crise actual vir a resultar em votos ainda mais à direita, na busca cega de algo diferente.


Movimento, os próximos passos

Com os governos desorientados a tentarem encontrar um caminho de saída para a crise, abre-se uma nova fase para o movimento popular. A nossa corrente já tinha definido um caminho para a refundação democrática da União Europeia bem antes de a crise estalar. Sabemos o que queremos e já publicamos resoluções bem claras sobre a matéria.
Mas o momento é hoje de especial oportunidade e, portanto, de especial responsabilidade. Um dos riscos que se corre é o de olhar para a Europa a partir das nossas perspectivas demasiado locais e, por locais, aqui pode entender-se por exemplo a França. É certo que hoje somos todos franceses no contentamento, no orgulho da vitória, no gozo profundo com o semblante carregado dos grandes políticos do projecto derrotado. Mas não podemos pensar que a Europa é a França. Se um país como a França é suficiente para matar o projecto de Constituição, sobretudo se secundado imediatamente pela Holanda, há que compreender que não é suficiente para construir uma alternativa. A situação na Europa, dos Açores à Polónia, da Suécia até Chipre, não é exactamente a mesma que em Paris. À maioria das cidades e vilas da União nunca chegou o Tratado constitucional, muito menos a sua crítica.
Mesmo em França e noutros países onde o movimento está activo, a complexa unidade do não de esquerda ou progressista não se revê numa alternativa comum ao Tratado rejeitado. Por um lado, porque há várias correntes de opinião sobre a construção europeia dentro dos sectores mais europeístas, por outro lado porque há esquerdas activas relativamente eurocépticas, e por outro porque há sectores do movimento mais autonomistas ou mais recalcitrantes a encarar qualquer projecto político institucional. Se alargarmos o âmbito geográfico da análise, incluiremos os sectores verdadeiramente de esquerda dos países do Norte, onde o eurocepticismo e mesmo a recusa da União Europeia são dominantes, bem como algumas forças do Sul ancoradas em posições mais soberanistas ou mesmo assumidamente anti-UE, afastando-se todos de qualquer concordância com projectos constituintes europeus, por mais democráticos que sejam.
Além do mais, não há hoje interlocutores institucionais para esse processo. Com todos os governos mais ou menos comprometidos com o actual projecto de Tratado e com a política que lhe subjaz, com todos os parlamentos nacionais, e também o europeu, dominados por forças do centro e da direita, qualquer conclusão positiva de um processo de alternativa constitucional europeia é difícil de vislumbrar.
Assim sendo, fazer da busca de um projecto diferente de Constituição, ou mesmo de um processo constituinte democrático e participado, o centro da táctica pós-referendo, teria como consequência estilhaçar um movimento que está numa fase ascendente e que pode aproveitar de um momento político favorável e dificilmente repetível.
Mas, se o movimento existe, o que o une? Une-o a recusa do neoliberalismo e das suas consequências, da fome e do abaixamento das condições sociais de existência e de trabalho, une-o a recusa da política de guerra e de rapina do imperialismo. Do que se trata é de, com base nesta unidade que não deve ser quebrada, alargá-la ainda mais, como se viu com o Make Poverty History que pode ser feito. Alargá-la às bases populares dos partidos do centro político que, com a crise social, têm condições para abandonar as suas referências políticas tradicionais. Alargá-la e consolidá-la através da passagem de uma fase de negação do projecto neoliberal para uma fase de apresentação de alternativas para uma Europa social. Tentando ganhar o maior apoio social para essas alternativas e tentando que esse apoio se transforme numa base também para alternativas políticas e eleitorais, em rotura com os partidos que têm conseguido ter o apoio popular e obter as maiorias nas eleições por toda a Europa.
Em suma, precisamos de apresentar uma estratégia alternativa à Estratégia de Lisboa.

"Estratégia de Atenas", uma alternativa à Estratégia de Lisboa

Esta questão de saber o que fazer a seguir aos referendos é o problema que preocupa as lideranças das instituições da União e todo o complexo mundo da eurocracia e dos negócios, e é uma dor de cabeça para os governos e parlamentos nacionais, sobretudos dos países onde a ratificação ainda não se realizou.
Mas esta é também a grande questão para o movimento popular que se mobilizou nas campanhas dos referendos e para todas as forças progressistas que lutam por uma outra Europa.
Nestes últimos anos de múltiplas resistências, têm sido produzidas análises e argumentos contra o projecto neoliberal europeu, onde, sector a sector, tanto o Tratado Constitucional como as principais Directivas que pretendem institucionalizar a nova política foram passadas pelo crivo da crítica, tendo sido apresentadas propostas em praticamente todos os sectores de actividade. A esquerda e o movimento alterglobal possuem já um assinalável acervo de alternativas consistentes e fundamentadas.
A isto junta-se agora uma nova situação política, com mais mobilização e confiança dos povos nas suas capacidades de intervenção política.
Precisamos de transformar as nossas múltiplas propostas e análises em algo consistente e comunicável para o grande público, num documento com um nome a que todos nos possamos referir. A proposta é que lhe chamemos "Estratégia de Atenas". Porquê e como a concretizar?
Para esta "Estratégia de Atenas" dever-se-á começar a trabalhar desde já. Quem? Todos, isto é, as ONG, os comités unitários dos referendos, as associações, como a ATTAC, os partidos de esquerda, as redes europeias como o GUE/NGL grupo parlamentar da esquerda do Parlamento Europeu, o Partido da Esquerda Europeia, o NELF New European Left Forum, a EACL European Anti-Capitalist Left (Esquerda Europeia Anti-Capitalista) e outras, bem como técnicos, especialistas e estruturas académicas empenhadas na construção de alternativas, enfim todas as pessoas que considerem ter um contributo a dar em qualquer um dos múltiplos fóruns de discussão e acção de que é feito o movimento por uma outra Europa. Com vista a que, em Abril de 2006, no âmbito do Fórum Social Europeu que terá lugar em Atenas, possamos formalmente realizar uma grande assembleia que possa aprovar uma estratégia alternativa à Estratégia de Lisboa.
A partir daí, seria interessante que essa "Estratégia de Atenas" fosse editada em livro e amplamente difundida em várias línguas, passando a ser uma referência de base para o movimento. Contra a Estratégia de Lisboa, documento agregador das políticas neoliberais europeias, nós defendemos a "Estratégia de Atenas" para uma outra Europa.
Dispondo de uma referência de base comum, poderiam mais facilmente ser gerados entendimentos políticos e apresentadas alternativas, eventualmente mesmo alternativas eleitorais onde as forças em presença considerarem adequado, seja onde já há partidos de esquerda em actividade, seja em países onde a esquerda está ainda à procura das melhores soluções organizativas.
O tempo de que dispomos daqui até Abril de 2006 parece ser um prazo adequado para chegarmos a um documento de qualidade, em que todos nos possamos rever. Não é demasiado curto, nem é demasiado longo, e sobretudo tem uma data final que é aceitável por todos e que já todos temos nas nossas agendas: o próximo Fórum Social Europeu.
Esta solução permite dar, desde já, a todos os nossos trabalhos em qualquer país e em qualquer organização, um sentido e um calendário comum: estamos a dar o nosso contributo para a "Estratégia de Atenas".
Ter um nome para uma estratégia comum ajuda-nos a comunicar de forma eficaz, não só entre nós mas, o que é mais importante, comunicar com o grande público. Assim, não perdemos a fantástica energia deste momento histórico que vivemos, e respondemos às expectativas enormes que nos povos está a despertar a nova situação política na Europa.

Responder à crise de representação democrática

Os referendos em França e na Holanda colocaram na ordem do dia um outro tema que não pode ser esquecido pela esquerda. O voto dos povos foi radicalmente diferente do voto ou da opinião dos respectivos Parlamentos. Em ambos os países, todos os maiores partidos fizeram campanha pelo sim e, se a aprovação fosse feita no Parlamento, o sim teria ganho de forma esmagadora.
A esquerda sempre emitiu opiniões críticas sobre o afastamento das instituições face aos interesses e às preocupações dos povos. Mas hoje isto já não é uma matéria de opinião, conhece-se a posição dos parlamentos e a dos povos através de números inquestionáveis e constata-se que são diferentes. Outros números, não tão inquestionáveis mas suficientemente credíveis, são os das sondagens de opinião que, da Alemanha a Portugal, vão apontando no mesmo sentido. Há um problema sério e generalizado de crise de representação democrática.
Estas são condições propícias para o crescimento de perspectivas populistas, antiparlamentares e antidemocráticas. A esquerda deve, pelo seu lado, assinalar esta discrepância, considerando que tem múltiplas causas, mas apontar uma solução de reforço democrático e de aumento da correspondência entre o voto expresso pelos eleitores e a sua tradução em assentos nos parlamentos. É tempo oportuno para aprofundar e popularizar a crítica às leis eleitorais que, em muitos países, distorcem a verdade dos votos, afastam as forças de esquerda dos Parlamentos, sendo os lugares (muitos ou poucos) a que teriam direito de acordo com sua votação, ocupados por deputados dos partidos do sistema, sem que para tal tenham recebido mandato. É preciso denunciar esta verdadeira batota e contrariar este sistema de lugares ganhos na secretaria e não no campo de luta eleitoral, que faz com que muita opinião crítica seja remetida para fora do Parlamento, em prejuízo da verdade democrática. Estas leis, além de fazerem com que os Parlamentos não correspondam ao voto expresso, alteram mesmo a expressão desse voto, levando a população a votar nos “elegíveis” e não naqueles com que se identificam.
Uma campanha pela defesa de leis eleitorais decentes, que respeitem a proporcionalidade e que não tenham limites mínimos, impõe-se como instrumento com vista a facilitar alterações na relação de forças. Isto em Portugal não é muito importante, já que a nossa lei eleitoral não é das piores, embora introduza alguma distorção (pela proporcionalidade directa o Bloco deveria ter 14 deputados) mas noutros países da UE é um bloqueio fatal para a esquerda. Há limites mínimos para eleição que vão até ao 10%. Há forças com 15% dos votos e zero deputados. Esta deve ser uma campanha ofensiva que pode vir a ganhar aliados em sectores democráticos para além da esquerda.

O tempo das alternativas políticas

A criação de alternativas eleitorais, à esquerda dos sociais-democratas, transformados por todo o lado em sociais-liberais, é uma tarefa que faz o seu caminho em vários países da União.
Na Inglaterra e no País de Gales, na sequência dos massivos movimentos contra a guerra, a esquerda organizou-se num novo partido, o Respect. Nas eleições gerais de 5 de Maio, em que concorreu pela primeira vez e apenas 16 meses depois de ter sido criado, o Respect conseguiu excelentes resultados, numas eleições por círculos reduzidos com representação uninominal, sistema que provoca a máxima distorção da proporcionalidade e coloca imensas dificuldades aos partidos médios e pequenos. No círculo de Bethnal Green & Bow, o Respect ganhou, com 35,9%, elegendo George Galloway para a House of Commons, em Westminster, facto assinalável já que é a primeira vez, desde 1945, que uma força à esquerda do Labour consegue um lugar no parlamento. Noutros círculos, os melhores resultados foram 27,5%, 20,7% e 17,2% os quais, apesar de serem excelentes, não permitiram eleger deputados. Mas os dados estão lançados. Na esquerda do Labour discute-se o projecto. Figuras históricas do trabalhismo britânico colaboram nas iniciativas do Respect, apesar de ainda não se terem desvinculado do velho partido. O coordenador eleitoral dos Verdes propõe conversações para discutir a construção de alternativa à esquerda do Labour. Galloway é figura presente nos meios de comunicação nacionais e internacionais, sobretudo depois da sua presença no último dia 19 de Maio num tribunal do Senado dos Estados Unidos da América onde, com a frontalidade que lhe é habitual nos comícios de massas, acusou a política americana no Iraque. Esta intervenção, que fez eco dos dois lados do Atlântico, é hoje um sucesso em DVD. Juntamos um extracto para os nossos leitores poderem ter uma ideia do estilo da defesa apresentada contra a acusação de colaboração com o Iraque.

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[Testemunho de George Galloway no Senado dos EUA ]

…”Tive dois encontros com Saddam Hussein, um em 1994 e outro em Agosto de 2002. Por muito que se estique a língua inglesa, ninguém pode descrever isto como “muitos encontros” com Saddam Hussein. Isso é falso.
De facto, eu encontrei-me com Saddam exactamente o mesmo número de vezes que Donald Rumsfeld se encontrou com ele. A diferença é que Donald Rumsfeld se encontrou com ele para lhe vender armas e para lhe dar mapas para melhor orientar essas armas para os alvos. Eu encontrei-me com ele para tentar acabar com as sanções, o sofrimento e a guerra (…)
Senador, tudo o que eu tenho dito acerca do Iraque revelou-se verdade e o que vocês disseram mostrou-se ser mentira e 100 000 pessoas, 1600 deles soldados americanos, pagaram com a vida o vosso monte de mentiras. (…)
Eu fui um oponente de Saddam Hussein quando os governos e os negociantes britânicos e norte-americanos lhe vendiam armas e gás. Eu estava nas manifestações em frente da embaixada iraquinana enquanto vocês faziam o vosso comércio. (…)
Olhem para a Haliburton e outras empresas americanas que roubaram não só o dinheiro do Iraque, mas também o dos contribuintes americanos. Olhem para o petróleo que nem sequer é contabilizado e que está a ser embarcado para fora do Iraque sem qualquer processamento legal. (…)”

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A Alemanha é o próximo passo. A confiante burguesia alemã anda alarmada com a hipótese de criação de uma força de esquerda de grandes dimensões que possa capitalizar o imenso descontentamento com as medidas neoliberais do governo de Schroeder, descontentamento que seria suposto favorecer apenas a subida da CDU. O acordo de colaboração do PDS, die Partei des Demokratischen Sozialismus, com grande implantação na zona oriental, com a WASG Die Wahlalternative - Arbeit & soziale Gerechtigkeit que, sobretudo na zona ocidental, reúne várias correntes de esquerda, sindicalistas e dissidentes do SPD, bem como a decisão de Oskar Lafontaine, popular ex-ministro das finanças e ex-líder do SPD, de se oferecer para encabeçar essa candidatura, e ainda a possibilidade de essa aliança mobilizar fortes sectores militantes não partidários, como a ATTAC Alemanha e sectores de militância juvenil e ecologistas, tem trazido o pânico às páginas dos jornais de referência, com sondagens a admitir a eleição de 30 a 40 deputados para o Bundestag, destruindo o tradicional equilíbrio partidário alemão. Na altura em que escrevo estas linhas, não existe ainda uma decisão final sobre o processo, porém, quando a comuna for publicada, essa decisão estará tomada e alimentamos a viva esperança de que o Linkspartei (Partido da Esquerda), possa ser a grande novidade das eleições de Setembro.


G8 em Edinburgh - uma semana de lutas

George Bush e a sua política continuam a ser grandes factores de mobilização e de unidade da esquerda e de todos aqueles que se opõem à política de guerra e de exploração. Mais uma vez, nesta cimeira do G8, provou a sua eficácia: um quarto de milhão de pessoas na rua em defesa de uma política social e de paz.

Deputados suspensos por protestarem
A semana começou agitada em Edinburgh. No dia 30 de Junho, a menos de uma semana do início da cimeira propriamente dita na luxuosa estância de Gleneagles, a manifestação prevista para o dia 6 de Julho junto ao local ainda não estava autorizada. Aproveitando um dia de perguntas ao primeiro-ministro escocês no Parlamento, os deputados do Scottish Socialist Party (SSP) lembram que o Parlamento em Março tinha aprovado uma moção em defesa da liberdade de realizar este protesto, e pedem uma resposta clara. Perante a evasiva de Jack McConnell, levantam-se dos seus lugares exibindo pequenos cartazes em defesa da democracia e do Parlamento. A sessão é suspensa e, no mesmo dia e sem sequer ouvir os interessados, é tomada a medida de suspender os quatro deputados (o SSP tem 6 deputados, mas na altura só 4 estavam presentes) durante um mês, com interdição de acederem aos seus gabinetes ou a qualquer parte das instalações do Parlamento, bem como a retirada dos seus salários e dos subsídios com que são pagos os salários de toda a equipa de apoio parlamentar. Cinismo dos cinismos, como estamos em tempo de pouca actividade, a suspensão só terá efeitos em Setembro, pelo que, de momento, tudo continuou na mesma. Esta medida drástica e desproporcionada, que viola vários princípios elementares do direito e da democracia, assume o carácter de um castigo colectivo, algo há muito erradicado do direito na nossa civilização. É tempo agora de levantar uma grande campanha europeia de protesto e solidariedade com os deputados do SSP.
No entanto, a manifestação em Gleneagles acabaria por ser autorizada poucos dias depois, com intervenção do SSP e do G8 Alternatives. Este incidente seria um sinal claro do que se poderia esperar das autoridades para os próximos dias.

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O Parlamento Escocês
O Parlamento Escocês é uma criação recente. Um referendo realizado na Escócia em 11 de Setembro de 1997 aprovou a ideia da criação de um parlamento, o que viria a ser ratificado pelo Parlamento do Reino Unido no ano seguinte. As primeiras eleições realizaram-se em Maio de 1999, tendo no dia 1 de Julho tomado posse o que seria o primeiro Parlamento Escocês desde 1707.
Cada eleitor tem dois votos, num sistema misto: vota num dos 73 círculos locais, onde se elege um deputado em cada pelo sistema maioritário (candidaturas uninominais, é eleito o candidato que obtiver mais votos, seja qual for a percentagem) e vota num dos 8 círculos regionais em candidaturas de partidos ou pessoais, que elegem no total mais 56 deputados. Com este segundo voto é, de alguma forma, compensada a falta de proporcionalidade que resulta da eleição nos círculos uninominais. Os 129 deputados têm o mesmo estatuto no Parlamento.
O Scottish Socialist Party, um projecto que juntou várias sensibilidades da esquerda, com várias semelhanças com o projecto do Bloco e que participa também nas reuniões da Esquerda Anti-Capitalista Europeia, elegeu 6 deputados nas últimas eleições de 2003, 4 mulheres e 2 homens.

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Make Poverty History
Quando 250 000 pessoas desfilavam nas ruas de Edinburgh, realizavam-se em Londres e noutras cidades os concertos do Live 8. A colaboração de Bob Geldof e de Bono com o governo de Tony Blair causava algum mal-estar. Sabia-se que Gordon Brown, ministro britânico e putativo candidato a herdeiro de Blair, tinha jogado muito forte na capitalização do movimento para aparecer como o homem que marcava a cimeira, o rosto do perdão da dívida. Que tudo tinha sido feito para que a manifestação tivesse um carácter cândido e caritativo, sem referências críticas ao G8 e ao governo britânico e sobretudo sem qualquer menção à guerra, tema maior da política no Reino Unido. Que deveria ter o cunho de uma pressão cidadã sobre os 8, esperando da cimeira o melhor resultado possível. Mas o ar que se respirava na manifestação era bem diferente. Os cartazes e as t-shirts apontavam o G8 como o problema e a causa, não a solução para a pobreza no mundo. A tónica era: para fazer a pobreza passar à história, era preciso fazer a política do G8 e o capitalismo passar à história. A guerra e Bush foram temas bem presentes. Gordon Brown não apareceu.
A simpatia por Geldof ficou ainda mais abalada quando este, ao chegar à estação de Edinburgh dias depois para se dirigir a Gleneagles, comenta os incidentes que se tinham registado com a polícia como provocados por "loosers" (insulto comum em inglês e que quer dizer perdedores ou derrotados) com os quais não tinha nada a ver. O problema nem foi a sua demarcação, mas o tom do insulto. Até porque todo o movimento contra a pobreza é precisamente de solidariedade com os "loosers" deste mundo. O insulto de "looser" é bem típico da sociedade competitiva em que vivemos, mas não encaixava naquele contexto. Mas a simpatia decrescente e a dúvida sobre a atitude de Geldof, ampliadas pelas suas aparições ao lado de Blair uns dias antes, ficaram arrumadas quando os jornais publicaram a sua foto numa elegante sala de Gleneagles com Mr. e Mrs. Bush. A força desta imagem de Geldof com os "winners" esclareceu mais do que mil palavras.

O papel da polícia
O Scottish Socialist Party já pediu um inquérito à actuação da polícia durante os protestos contra o G8, nomeadamente às unidades vindas de fora da Escócia, acusadas de actuação ilegal na tentativa de intimidar os participantes e impedir a sua participação em actividades que estavam autorizadas, sobretudo na manifestação do dia 6 em Gleneagles. Anunciaram que a manifestação estava cancelada, esvaziaram os autocarros prontos para partir e tentaram (sem êxito) retirá-los do local. Prenderam o organizador. Depois fecharam os autocarros com os manifestantes lá dentro para impedir que se juntassem aos que protestavam na rua.
O exagerado aparato policial, nunca antes visto pela população da Escócia, com cavalos, cães e equipamento de combate, e os cortes de ruas que faziam para dividir os presentes em pequenos grupos foram, em algumas situações, o catalizador da revolta dos presentes e o único motivo dos protestos. Grupos de manifestantes e população local foram isolados em partes de rua durante horas a fio sem acesso a água ou a quartos de banho. Os polícias eram tantos que não havia sequer viaturas suficientes para os transportar e deslocavam-se alguns em furgões com logotipo de empresas de rent-a-car.
O custo da operação policial foi de 150 000 000 de libras. Os belos campos verdes à volta do hotel da cimeira foram completamente cercados por uma muralha metálica, com torres de vigia e câmaras de televisão. Mesmo assim, algumas centenas de manifestantes conseguiram romper o cerco durante uns minutos.
Mais de 350 pessoas foram detidas. Impediram as famílias dos que foram ouvidos no tribunal local de assistir a audições que são públicas por força de lei. Muitos polícias escondiam a sua identificação para evitarem queixas. Mesmo assim dezenas de queixas foram apresentadas.

Marxism 2005 reúne milhares em Londres
No dia a seguir à manifestação em Gleneagles, 7 de Julho, começaria em Londres um grande ciclo de conferências intitulado Marxism 2005, para onde alguns dos participantes se dirigiram. Mas as conferências não começaram nesse dia porque Londres sofreu uma série de atentados à bomba nos transportes públicos, que paralisaram completamente a circulação em toda a zona centro. Uma das bombas em autocarro foi colocada a poucos metros das instalações onde deveriam decorrer algumas das reuniões e dos hotéis onde estavam instalados os participantes estrangeiros.
Mas, no dia seguinte, com o programa alterado, o evento teve início. Mesmo amputado o programa, realizaram-se 139 conferências com mais de 4000 pessoas a assistir, isto apesar de a entrada ser paga. É de facto fantástico ver tanto interesse na discussão do marxismo e da política. Trata-se de uma realização anual promovida pelo Socialist Workers Party, um partido que participa na EACL-European Anti-Capitalist Left e que é um dos principais animadores do Respect.
Depois de uma semana de luta intensa contra o G8, toda a discussão ganha mais sentido e mais animação. A situação na Europa depois dos referendos também constituiu especial motivação. Assim, muitos dos debates se debruçaram sobre os caminhos a seguir e a ligação do debate teórico com a necessidade de dar respostas práticas a uma situação especialmente exigente para a esquerda faz da teoria um verdadeiro guia para a acção.

O Sinn Féin e os difíceis caminhos da paz

Publicado em: Global, Março de 2005

O Sinn Féin (SF) celebrou este ano o centenário da sua fundação, que ocorreu em Dublin, hoje capital da república do Sul. É o único partido do complexo cenário irlandês que elaborou um “livro verde” para toda a ilha, em coerência com a sua estratégia para uma reunificada “Irlanda de iguais”, livre, democrática e republicana.
Recentemente, desafiaram o governo de Dublin a apresentar, também ele, um livro verde para a unidade nacional e para a construção democrática e pacífica de uma sociedade que inclua todos os irlandeses, aposta que nenhum governo do Sul fez até hoje.
O congresso realizou-se, contudo, sob fortíssima pressão dos meios de comunicação de ambos os lados da fronteira. Em parte, tal explica-se como reacção preventiva à grande subida eleitoral que o Sinn Féin tem tido, não apenas nos 6 condados do Norte, mas também nos 26 condados do Sul. Com efeito, nas últimas eleições europeias, elegeram pela primeira vez duas deputadas para o Parlamento Europeu, que viriam a integrar o GUE/NGL. Bairbre de Brun, eleita pela Irlanda do Norte, alcançou 26,3%, ficando em segundo lugar, logo atrás dos unionistas, com 32%.
Mas no Sul, na República da Irlanda, o Sinn Féin também cresceu, elegendo em Dublin Mary Lou McDonald, com uma votação de 14,3%. Globalmente, os republicanos são hoje o terceiro maior partido da Irlanda do Sul, com 11,3%, ultrapassando os
Trabalhistas. Têm ainda muitos eleitos no poder local. Esta consolidação tem gerado muita preocupação e mesmo algum pânico entre os unionistas do Norte e entre as forças de direita e de centro no Sul.

O caso McCartney

Para a atitude da comunicação social irlandesa e internacional, contribuiu o “caso McCartney”. O que se passou a 30 de Janeiro, num pub de Belfast, pesa sob a política republicana. Na sequência de ditos desagradáveis sobre um grupo de mulheres, uma briga violenta que transborda para fora do bar e redunda no assassinato de um dos presentes: Robert McCartney.
A história nada teve de política e em qualquer país seria um caso de polícia. Mas na rixa estiveram envolvidos vários membros do movimento republicano que, depois da tragédia, teriam roubado a cassete de video-vigilância, apagado vestígios, e intimidado os presentes para não testemunharem sobre os factos. Daqui à acusação que o IRA seria responsável pelo crime, foi um pequeno passo. De imediato, a direcção do IRA declarou não ter tido nada a ver com o incidente e procedeu a um inquérito interno, que confirmou o envolvimento de três dos seus membros. A organização condenou veementemente a sua atitude e expulsou três militantes.
Um deles prestou depoimento às autoridades e os outros dois foram instados a assumirem as suas responsabilidades. O IRA reafirmou o apoio às exigências da família e declarou não tolerar que alguém use o nome da organização para intimidar testemunhas que queiram ajudar à descoberta dos criminosos. Mas o mal estava feito.

Os ataques crescem
O apoio também


O SF, que foi também atacado devido a este caso, tomou uma posição muito clara. Gerry Adams afirmou, no Ard Fheis, que não descansará enquanto “os que mancharam a causa republicana não forem levados à justiça”. Sem retórica, explicou aos delegados que não poderia fazer campanhas sobre as vítimas dos britânicos e dos paramilitares unionistas, se não fosse igualmente claro na exigência de justiça neste caso.
Aliás, o momento mais emotivo do congresso foi quando o presidente entrou na sala na companhia das irmãs McCartney e a assembleia aplaudiu de pé a família da vítima e a sua presença confirmando o papel que o SF está a ter na descoberta e castigo dos autores do crime.
Estes acontecimentos ocorreram em cima de eleições intercalares num círculo eleitoral da Irlanda do Sul: Meath, pelo que o tom das acusações contra os republicanos visava em boa parte o esvaziamento eleitoral da sua base de apoio. Em Meath, o Sinn Féin tinha tido 3,53% em 1997 e 9,43% em 2002. Com estas circunstâncias verdadeiramente anormais a rodearem a campanha, muito se especulou sobre os resultados. Mas, mais uma vez, o apoio do SF cresceu, obtendo esta semana em Meath 12,25%, confirmando-se como o terceiro partido, à frente do Labour.
A importância deste resultado é, contudo, maior, porque o processo de paz se encontra bloqueado. A leitura dos resultados pesará na avaliação estratégica dos britânicos e dos unionistas que, a Norte, querem dificultar e/ou impedir a participação dos republicanos no futuro governo. E até mesmo no Parlamento de Londres (onde o SF ganhou 4 lugares nas últimas eleições), que acaba de votar a retirada do direito do SF às comparticipações financeiras.
Mas o tempo corre contra eles. A favor da paz conta o caminho já percorrido e ainda a vontade expressa do povo da ilha.

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Um congresso singular

Durante três dias os congressistas do Sinn Féin discutiram e votaram 380 moções, além de uma série de emendas. As moções, agrupadas em 18 grandes temas, são de pequena dimensão, algumas de um parágrafo apenas, e são apresentadas por estruturas de direcção ou de base, por militantes ou grupos de militantes. Os congressistas são concretos - a favor ou contra em cada ponto - e vota-se, uma a uma, no fim de cada tema. Este método de trabalho, praticado também por outros partidos de esquerda do Norte da Europa, permite aos delegad@s uma maior proximidade em relação às decisões, precisas e delimitadas. Mas como não há bela sem senão, a coerência entre as escolhas é
difícil de garantir. Assim, com periodicidade anual e de forma inteiramente aberta à comunicação social, @s militantes decidem a linha do partido nestes congressos, a que chamam em gaélico Ard Fheis (lêse ardéch). Os órgãos dirigentes nacionais são eleitos em votação secreta durante o congresso, em listas separadas masculinas e femininas, para assegurar a paridade. Quem viu esta instância a funcionar e a decidir sem soluções predefinidas por outrem, não pode deixar de sentir alguma revolta ao ver nos canais de televisão internacionais John Bruton, o novo representante da União Europeia junto dos EUA e ex-primeiro-ministro da Irlanda, afirmar que no Sinn Féin as decisões “são impostas de fora”. A União não deveria permitir que John Bruton utilize o seu novo posto institucional para efeitos de propaganda doméstica.

Como traduzir “flexicurity” para português?

Junho 2007

Nos debates actuais em torno do conceito de flexicurity proposto pela Comissão Europeia como paradigma das novas relações laborais, temos assistido a certas hesitações sobre a palavra portuguesa correspondente a este termo. Mas, se o conceito é central no debate, convém não ter dúvidas sobre o termo que o deve designar.
O melhor é tentarmos esclarecer essas dúvidas na fonte de onde emana a proposta e de onde virá a decisão: a Comissão Europeia, nomeadamente o comissário encarregado deste dossiê e que tem o pelouro do Emprego, Assuntos Sociais e Igualdade de Oportunidades: Vladimir Spidla.
Nas vésperas da publicação da tão aguardada comunicação da Comissão, Spidla explica, numa entrevista à revista The Parliament Magazine (nº 246, 21 de Maio de 2007 www.theparliament.com), o que querem dizer os conceitos combinados na flexicurity: “Flexibility não significa apenas tornar mais fácil contratar e despedir, mas antes assegurar que os trabalhadores se conseguem mover facilmente entre o desemprego e o emprego. Trata-se de ser capaz de se movimentar tão bem através do mercado de trabalho como na progressão dentro das carreiras. Da mesma forma, a questão da security não é só sobre benefícios ou ter um trabalho para toda a vida – o que se está a tornar rapidamente uma coisa do passado. Security hoje significa assegurar que os trabalhadores tenham as competências certas para se adaptar.”
É conveniente, então, que nos debates que se vão fazer em Portugal durante os próximos meses, se ponham de lado os velhos dicionários que propõem para a palavra security a arcaica tradução de segurança. De acordo com a forma como é definido expressamente o conceito de security no glossário Spidla, a tradução mais adequada de flexicurity será pois “flexiadaptação” e não os enganosos e deselegantes termos de “flexigurança” ou “flexissegurança” que têm vindo a gerar a expectativa entre muita gente de que a segurança – uma segurança reduzida, actualizada face à realidade demográfica e à globalização, mas apesar de tudo segurança – tem algo a ver com o que está proposto pela Comissão.
Para além desta clareza conceptual, há que fazer justiça ao Comissário no seu combate pela igualdade de oportunidades, uma das componentes do seu pelouro. Constatando o facto de alguns trabalhadores terem uma situação de emprego estável e com direitos, privilégio que considera não ser possível generalizar a todos nos dias de hoje, está empenhado em conseguir colocar estes trabalhadores numa situação de igualdade com todos os que estão confrontados com uma vida precária de procura constante e desesperada de um emprego, obrigados a aceitar quaisquer condições e remunerações quando aparece uma oportunidade. Pois se a vida está difícil, o princípio da igualdade não obriga a que seja difícil para todos?
Elementar, caros leitores.

Pragmatismo e demagogia "resolvem" a questão do Tratado

Intervenção no colóquio “Socialismo 2007”, Lisboa, 2 de Setembro de 2007


1. Sócrates e a chave do sucesso

O novo Tratado é, sem dúvida, o tema principal deste semestre de presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. E o eventual “Tratado de Lisboa” pode muito bem vir a ser a sua coroa de glória, se vier a ser aprovado antes do fim do ano. Sabemos que, à semelhança do que se passou na anterior presidência em 2000 com a “Estratégia de Lisboa”, resulta em parte da conjugação de alguns acasos históricos e de necessidades de calendário que o nome de “Lisboa” figure tanto no Tratado como na Estratégia, dois dos documentos fundamentais da União. Mas não devemos ignorar também a contribuição do know-how dos nossos governantes para a obtenção deste tipo de importantes acordos.
No caso presente do Tratado, haverá sem dúvida muito know-how técnico-jurídico por detrás das centenas de páginas apresentadas em tempo recorde à Conferência Intergovernamental (CIG), três semanas apenas após o início da presidência. Mas não é esse o factor decisivo. O que conta mesmo, neste contexto de crise prolongada que se seguiu ao fracasso no referendo ao Tratado Constitucional, é o know-how político e não a competência jurídica.
E Sócrates demonstrou tê-lo, quando percebeu qual é a chave para o êxito neste processo: a rapidez. Quando em 11 de Julho, em Strasbourg, fez a apresentação da presidência portuguesa ao Parlamento Europeu, do longo discurso e do debate que se seguiu, foi esta a ideia que me pareceu realmente mais marcante: “aproveitar o momentum político e andar depressa”.
Também Luís Amado, na sessão de abertura da Conferência Intergovernamental, em Bruxelas a 23 de Julho, afirmava que o debate sobre os Tratados já se arrasta há demasiado tempo e que passámos de um período de reflexão a um momento para acção, sublinhando que o Conselho Europeu foi muito claro ao indicar que “a CIG concluirá os trabalhos o mais rapidamente possível”.
Neste contexto, a presidência portuguesa beneficia até de um factor que é normalmente considerado prejudicial no calendário das presidências rotativas: o segundo semestre é mais curto, em tempo útil, porque inclui o período de Verão. Mas para o efeito que se pretende agora, isto é uma vantagem, porque os especialistas puderam trabalhar até agora sem terem os políticos e as opiniões públicas a incomodar. Quando a vida política retomar o seu ritmo normal após as férias, muito do trabalho já estará feito, de forma ser possível tomar decisões em Viana do Castelo, a 7 e 8 de Setembro, na Reunião Informal de Ministros dos Negócios Estrangeiros, e fechar as negociações a 18 e 19 de Outubro, em Lisboa, na Cimeira Informal de Chefes de Estado e de Governo para finalmente fazer uma cerimónia de assinatura formal antes do fim do ano. É um ritmo acelerado, nada habitual no pesado mecanismo institucional da União.
A equipa de Sócrates está a pôr ao serviço da UE a sua receita governativa doméstica: decisão rápida pré-combinada com as pessoas “certas”, sem consultar nem atender a razões de terceiros, afrontando as opiniões públicas com soberano desprezo, recuperando depois a popularidade com meia de demagogia e muita comunicação social. É a política do “come e cala”, que os portugueses bem conhecem. Perante tanta eficácia, compreende-se o encanto de uma eurocracia traumatizada por um longo e penoso processo em que viu adiados os seus ambiciosos projectos institucionais por ter cedido à tentação de dar a voz ao povo ignaro e se ter deixado enredar nas teias paralisantes da democracia. Neste campo, o governo português tem lições a dar à Europa.

2. Uma política errada?

Que pensar desta atitude da presidência portuguesa? Deve dizer-se que é uma política errada ou deve reconhecer-se que, em face das circunstâncias, estão a fazer o que era preciso e estão a agir de uma forma eficaz?
Permitam-me introduzir aqui uma breve reflexão sobre esta classificação de “errada” que por vezes as oposições e os sindicatos atribuem à política do governo.
Quando se diz que uma política é errada, o que fica subentendido é que ela não permite atingir determinados objectivos que se tem de supor serem do comum interesse do crítico e do criticado.
Dir-se-á a alguém que parte de Coimbra em direcção ao Norte que está no caminho errado? Depende. Sim, se o objectivo for chegar a Lisboa, mas não se o destino pretendido for o Porto. Sem um acordo prévio relativamente aos objectivos, é impossível atribuir classificações do tipo “certo” ou “errado”. Mesmo se esse acordo não é explícito, deduz-se da simples atribuição daquela classificação que existirá implicitamente.
Dito de outra forma, a classificação de uma política como certa ou errada é uma classificação interna a um determinado campo, e o campo é definido pela posição dos seus elementos face a determinados objectivos, ou seja, os campos delimitam-se através da partilha de objectivos comuns. Têm portanto uma geometria variável dependente dos objectivos concretos que os conformam.
Um exemplo recente: no referendo sobre o aborto definiram-se claramente dois campos em torno dos dois objectivos possíveis: a vitória do Sim e a vitória do Não; dentro do nosso campo, o do Sim, considerámos que a posição inicial do PCP de oposição ao referendo era uma posição errada, porque aceitávamos que partilhávamos com o PCP o mesmo objectivo de conquista do direito ao aborto. Mas não faria sentido classificarmos como erradas as várias opções que se desenharam dentro do campo do Não. Para essas, reservámos outro tipo de classificativos. Paralelamente, dentro do campo do Não, era normal aparecerem críticas de umas posições face a outras consideradas erradas por prejudicarem o seu objectivo da vitória do Não.
Acontece que na questão do Tratado Europeu, como em muitas outras, nós não nos encontramos no mesmo campo que o governo português ou o Conselho Europeu, e isto porque não temos objectivos comuns nesta matéria. Assim, não consideramos errada a posição do governo. Provavelmente será até a posição certa para atingir os seus objectivos. O que se passa é que nós não partilhamos o desejo de que esses objectivos sejam atingidos. Pelo contrário, o nosso campo constrói-se na luta contra esses objectivos e por uma UE completamente diferente.

3. Algumas razões da nossa oposição ao Tratado

Um dos principais argumentos apresentados para a urgência de um novo Tratado é a necessidade de proceder a reformas institucionais que adaptem o funcionamento da União às novas condições que resultam dos últimos alargamentos e da evolução da Europa e da situação internacional. Esta questão, de grande importância, será tratada noutro texto e noutro contexto, dada a sua extensão e especificidade, que não cabe num debate de uma hora.
Vejamos então algumas de entre as muitas outras razões que justificam a nossa oposição ao novo Tratado e ao novo processo para a sua aprovação.

3.1. Complexidade e hermetismo
Contrariamente ao que foi anunciado ou sugerido por alguns dirigentes europeus, com especial destaque para Sarkozy, não estamos perante um “mini-Tratado” ou um “Tratado simplificado”. Muito pelo contrário. A solução adoptada no Conselho Europeu de Junho de 2007 é bem mais longa e complexa do que o anterior projecto de Tratado Constitucional, porque mantém em vigor os Tratados actuais — o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado que institui a Comunidade Europeia —, que são emendados por este novo Tratado Reformador, recuperando todo o conteúdo do defunto Tratado Constitucional (TC) (conteúdo esse que, para acalmar os ânimos, é referido de forma mais inócua como “as inovações da CIG de 2004”) apenas com as excepções muito precisas definidas no mandato aprovado para a CIG de 2007.
O resultado deste emaranhado jurídico produzirá um texto hermético, dificilmente acessível ao cidadão comum que queira interessar-se pelos assuntos europeus. Para que se perceba do que estamos a falar, cito um naco de prosa da proposta de Tratado entregue pela presidência portuguesa (no momento em que escrevo estas notas, existe apenas a versão em francês, mais uma consequência da pressa que referimos acima e de como ela afecta a possibilidade de uma participação democrática e cidadã):
“Le texte de l'article 16 devient l'article 17bis, avec les modifications indiquées ci-après au point 35). Il est remplacé par un texte qui reprend le libellé de l'article 22, avec les modifications suivantes:”
É este tipo de documento que se preparam para aprovar. Não me espanta assim que depois se argumente que, apesar de muito boa vontade para fazer um referendo, a demasiada complexidade ou tecnicidade do texto não permite submetê-lo a uma consulta popular. Quem pode dizer Sim ou Não a uma coisa destas?
Depois de tudo aprovado, virá então um batalhão de juristas e linguistas fazer um trabalho técnico de consolidação nas 23 línguas oficiais. E o assunto ficará resolvido, na paz dos gabinetes.

3.2. Simbologia e demagogia
Há, no mandato dado pelo Conselho, algumas eliminações simbólicas, que são bem o retrato da vasta manobra demagógica que está em curso:

— A “concorrência livre e não falseada”, que aparecia no nº 2 do Artigo I-3.º (Objectivos da União) do Tratado Constitucional, foi objecto de uma ruidosa campanha de Nicolas Sarcozy para que fosse retirada, em nome da protecção que a UE deveria proporcionar às suas empresas e aos seus trabalhadores, num mundo de concorrência global por vezes hostil e falseada. O Conselho, nada convencido, concedeu, porque todos compreendem que foi na França que nasceu o problema para o Tratado e é em França que ele tem que ser prioritariamente resolvido. Aos defensores do Não que se opunham à constitucionalização do neoliberalismo, será agora respondido que Sarkozy os ouviu e resolveu o problema. Em Bruxelas faz-se política… Embora Merkel e Barroso logo se tenham apressado a acalmar o mundo dos negócios e os governos mais liberais explicando que nada mudará em termos de política económica, e que a livre concorrência, não sendo um objectivo, é no entanto um meio inquestionável para atingir os objectivos da União. Ficará tudo na mesma, portanto.

— A bandeira, o hino e o lema foram também vítimas de amputação: já não serão os símbolos da União. Enrique Barón Crespo, ex-presidente do Parlamento Europeu, ex-presidente do grupo socialista e um dos três representantes do PE na CIG 2007, visivelmente desagradado com a medida, perguntava no plenário, no debate com Sócrates: “… estamos reunidos aquí con la bandera europea. ¿Qué vamos a hacer, señor Presidente? ¿Vamos a retirar la bandera o va a ser considerada esta reunión como una reunión ilegal? Éste es un punto importante, que tiene un aspecto en cierto modo humillante.” E depois, numa conversa de corredor, dizia-me que se tinha perdido o sentido do ridículo e esquecido que o ridículo mata. Posso estar parcialmente de acordo, mas a verdade é que se o Conselho se presta a esta humilhação e a este ridículo, o faz em nome de um pragmatismo político que tem em vista o objectivo “superior” de aprovar o Tratado a todo o custo. Aos opositores mais populistas ao Tratado, nomeadamente da direita nacionalista (outro sector apreciável dos votantes do Não) que brandia o espantalho de um super-estado que poria em causa as identidades nacionais, apresentar-se-á o não menos populista argumento da retirada formal dos símbolos mais visíveis. Demagogia barata que, creio eu, não chegará a sair do papel. Um desafio que vos deixo é o de tentarem observar, de entre as inúmeras bandeiras azuis hasteadas nas instituições europeias ou nacionais, das fachadas dos edifícios e gabinetes dos ministros até às Juntas de Freguesia, quantas vão ser retiradas após a aprovação do novo Tratado.

— A moeda única que, embora não tenha sido adoptada em toda a União, era referida no TC como “a moeda da União”, passará a ser mencionada da seguinte forma: “A União estabelece uma união económica e monetária cuja moeda é o euro.” Aqui também nada muda na prática, mas tenta-se acalmar os indefectíveis das libras ou das coroas.

Neste campo, há várias alterações, algumas meramente cosméticas ou terminológicas, outras com algum sentido político, mas cujo objectivo único é criar armas para o combate político às objecções (mais sérias ou mais populistas) que foram levantadas à anterior proposta de TC.
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No Artigo I-8.º do TC definiam-se os Símbolos da União: “A bandeira da União é constituída por um círculo de doze estrelas douradas sobre fundo azul. O hino da União é extraído do «Hino à Alegria» da Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven. O lema da União é: «Unida na diversidade». A moeda da União é o euro. O Dia da Europa é comemorado a 9 de Maio em toda a União.”

Agora, decide o Conselho:
“O TUE e o Tratado sobre o Funcionamento da União não terão carácter constitucional. Esta mudança reflectir-se-á na terminologia utilizada em todos os textos dos Tratados: não será usado o termo "Constituição", o "Ministro dos Negócios Estrangeiros da União" será designado Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, serão abandonadas as denominações "lei" e "lei-quadro", e manter-se-ão as actuais denominações "regulamentos", "directivas" e "decisões". De igual modo, nenhum artigo dos Tratados alterados fará alusão aos símbolos da UE, como a bandeira, o hino e o lema. No tocante ao primado do direito da UE, a CIG aprovará uma declaração remetendo para a actual jurisprudência do Tribunal de Justica da UE. Enquanto que o artigo sobre o primado do direito da União nao será reproduzido no TUE, a CIG acordará na seguinte declaração: "A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adoptado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência."

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3.3. Conteúdo anti-social
Na nova versão do Tratado não há qualquer mudança de rumo nas políticas anti-sociais e anti-laborais que têm caracterizado os últimos anos de construção europeia.
No entanto, relativamente aos “serviços de interesse económico geral” (água, electricidade, limpeza urbana, transportes, etc.), hoje alvo preferencial da cobiça de grandes grupos privados, e que foi um tema muito debatido nos referendos, será anexado ao Tratado um Protocolo em que se reconhece uma “vasta discrição das autoridades nacionais, regionais e locais na prestação, adjudicação e organização de serviços de interesse económico geral de uma forma que atenda tanto quanto possível às necessidades dos utilizadores” e reconhece-se “a diversidade entre vários serviços de interesse económico geral e as diferenças nas necessidades e preferências dos utilizadores que possam resultar de diversas situações geográficas, socais ou culturais”, bem como “um elevado nível de qualidade, segurança e acessibilidade de preços, igualdade de tratamento e promoção do acesso universal e dos direitos dos utilizadores”. Este reconhecimento, formalmente positivo, terá como objectivo esvaziar algumas das críticas mais severas às políticas europeias em prol da privatização dos serviços públicos. O problema é que são precisamente as “autoridades nacionais, regionais e locais” que, usando a sua “vasta discrição”, têm promovido a entrega destes serviços ao mundo dos negócios. Mas tanto o Tratado como a União ficariam assim isentos de culpa e ao abrigo da crítica, transferindo o alvo dos ataques para essas autoridades. É claro que na vida real teremos o mesmo resultado prático, bastante negativo para os consumidores.

3.4. A Carta dos Direitos Fundamentais
Já noutro artigo analisei a problemática da Carta dos Direitos que será retirada do corpo do Tratado (no TC era a Parte II), embora seja referida num artigo que lhe atribui um carácter vinculativo, carácter esse que a seguir é limitado por Protocolos anexos, fazendo com que direitos declarados fundamentais não sejam considerados universais dentro do espaço da União. A crítica de esquerda ao conteúdo redutor da Carta mantém-se mas, como em tudo o mais, o novo Tratado vem acrescentar mais alguma confusão.
No final, muitos direitos, mesmo reduzidos no seu conteúdo e limitados no seu âmbito geográfico, ficarão no papel, como aliás já estava previsto na artificiosa engrenagem jurídica de “Anotações” com que Giscard d’Estaing tinha armadilhado a Carta quando na Convenção a incorporou no Tratado Constitucional; essas “Anotações” apareciam no ponto 12 da Acta Final A anexa ao TC (!) e eram apresentadas como “um valioso instrumento de interpretação destinado a clarificar as disposições da Carta”.
Um exemplo concreto: o Artigo 34.º, sobre “Segurança social e assistência social”, “reconhece e respeita o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem protecção em casos como a maternidade, doença, acidentes de trabalho, dependência ou velhice, bem como em caso de perda de emprego”, “reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes”. É um bom artigo, reconheçamos.
Mas, nas “Anotações”, o Presidium da Convenção esclarece que “A referência aos serviços sociais (…) não implica de modo algum que tais serviços devam ser instituídos quando não existirem.” Ou seja, tem direito aos serviços sociais quem já tem os serviços sociais; quem não tem, não poderá contar com a Carta e com os seus Direitos para os exigir.

3.5. Militarismo e subordinação à NATO
Também aqui não há mudanças. No TC afirmava-se que “A política comum de segurança e defesa conduzirá a uma defesa comum logo que o Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, assim o decida.” No mandato da CIG prescreve-se mais redondamente “a definição gradual de uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesa comum.” Do “conduzirá” ao “poderá conduzir” poderia haver uma certa distância, mas a ressalva da decisão por unanimidade associada ao “conduzirá” que deixa de existir no “poderá conduzir” mostra que a mudança é, como em quase tudo o resto, cosmética para acalmar os ânimos mais exaltados, mas que não augura nada de bom. Esta criação da “defesa comum”, combinada com o compromisso dos Estados-Membros “a melhorar progressivamente as suas capacidades militares” e a respeitar “os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte”, mostram que todas as críticas feitas ao anterior Tratado em matéria de defesa se aplicam à nova versão e continuam a ser uma das razões principais de oposição dos movimentos sociais.

3.6. Novo embrulho da mesma política
Apresentamos apenas alguns exemplos das muitas razões pelas quais a esquerda se opõe ao Tratado Reformador, como se opôs ao Tratado Constitucional.
Os defensores do novo Tratado por vezes gabam-se de ter preservado mais de 90% do conteúdo do TC. Mas quando precisam, utilizam as diferenças como argumento. Dizia, no debate sobre a convocação e o mandato da CIG, Richard Corbett, eurodeputado do Labour e coordenador dos socialistas para os Assuntos Constitucionais: “Muitas pessoas comentaram que este mandato mantém 90% do conteúdo do Tratado Constitucional, e isto gerou muitos comentários. Mas os colegas também sabem que investigações científicas recentes demonstraram que os seres humanos e os ratos são geneticamente idênticos a 90%. No entanto, a diferença de 10% é bastante importante. Da mesma forma, neste mandato, a diferença de 10% é muito importante.” Embora lamente as diferenças, Corbett lembra que elas “tornarão possível, tornarão mais fácil ratificar o Tratado nos 27 Estados-Membros e isso é o ponto crucial que devemos reconhecer.”
É o euro-pragmatismo no seu pior que agora vem substituir a euro-arrogância da fase pré-referendos, e que brande as armas da demagogia para tentar resolver o problema que teve com a democracia. Na nossa opinião, o conteúdo político neoliberal das duas versões do Tratado é precisamente o mesmo e as críticas que fizemos ao défice democrático dos métodos e das soluções são agora reforçadas e ainda mais justificadas.

4. Os contornos da nova campanha da esquerda

4.1. O que há de novo neste segundo round ?
É de notar que, neste segundo processo de elaboração do Tratado, estamos numa fase pela qual já tínhamos passado antes com grande “sucesso” e festejos: a fase de aprovação de um texto decidido por unanimidade pelos Chefes de Estado e de Governo. Até ao momento, não parece haver nada de novo. No entanto, as elites europeias estão a festejar o acordo de Junho passado como um facto de grande significado. Mas qual é verdadeiramente este significado?
O único facto relevante acontecido entre a aprovação pelo Conselho do anterior Tratado Constitucional e a aprovação do novo mandato para a CIG 2007 foi a realização dos referendos. Seria natural e até louvável que, em face dos resultados negativos nas consultas populares, o Conselho decidisse alterar o conteúdo do texto para responder às objecções levantadas e o tornar aprovável.
Mas o que há de novo neste segundo round não é qualquer verdadeira mudança de substância, de objectivo ou de projecto. O que há de novo é a perda de confiança dos governantes de que conseguem aprovar nas opiniões públicas o seu verdadeiro projecto para a UE, redigido em termos mais ou menos claros, e é a decisão de avançar por outro caminho para o mesmo objectivo. Outro caminho cuja principal “vantagem” será passar ao lado das opiniões públicas, expressas de forma soberana e vinculativa. O longo período de reflexão produziu o seu fruto: a euro-montanha pariu um monstro.

4.2. Que táctica para a esquerda?
Face a esta mudança de táctica dos governos, as oposições populares e de esquerda estão a definir a sua resposta.
Esta resposta deve incluir obviamente a clarificação do conteúdo e do alcance do Tratado, sobretudo centrada na demonstração de que se trata essencialmente do mesmo projecto que já foi discutido e dissecado com pormenor nas campanhas de há dois anos.
Mas o centro da táctica deve ser colocado noutro ponto, precisamente naquilo que há de novo nesta fase, e que é o afastamento dos povos do processo de ratificação. Esta baixa manobra é sentida amplamente pelas populações como uma atitude de cobardia e desonestidade anti-democrática e constitui o principal ponto fraco do novo processo. Nesse sentido, os debates sobre o novo Tratado devem demonstrar que as alterações feitas não são de substância, mas que têm como principal finalidade a comunicação política ao serviço da táctica de fuga ao controlo das populações sobre o processo de construção europeia.
Esta fuga assentará em argumentos mutantes. Em França e nos Países Baixos será explicado que não é necessário fazer novos referendos porque o novo Tratado é completamente diferente do TC e já contempla as alterações que respondem às críticas feitas pelos defensores do Não. Em Espanha e no Luxemburgo provavelmente argumentar-se-á que não é preciso fazer novos referendos porque este Tratado é praticamente igual ao que já foi referendado. No Reino Unido dir-se-á que o euro já não é a moeda da União, que tanto a Carta de Direitos como decisões judiciais europeias não se aplicam além-Mancha e que Solana não é Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE. Outros dirão que não havendo bandeira nem hino, a União já não representa um perigo para a sacrossanta bandeira e para o hino nacional. Junto de outros públicos afirmar-se-á que o referendo era justificado para uma Constituição, mas não para um “simples” Tratado como os anteriores, que também não foram referendados. Ou, se não for por ser simples, então é porque é complicado de mais que nâo vai poder ser submetido a referendo. A campanha será forte e demagógica, preparemo-nos para o pior.
Do nosso lado, continuamos a discordar profundamente e a combater a política anti-social que se tem aprofundado ao longo dos anos em resultado do projecto neoliberal que inspirou os sucessivos Tratados. Mas é o carácter anti-democrático que se revela agora ainda mais chocante no novo processo de aprovação e ratificação.
A exigência de uma Europa de democracia tem de ser mais do que nunca associada à exigência de uma Europa social. Uma não é possível sem a outra e a esquerda que não saiba dar resposta à questão da democracia europeia não estará à altura da exigente responsabilidade da luta pelos direitos sociais.